(Scribd, 10/09/2014) As mulheres brasileiras estão monopolizando a disputa presidencial do Poder Executivo, em 2014, mas, provavelmente, devem continuar com baixa representação nos principais cargos do Poder Legislativo. Esse é um paradoxo de gênero na política institucional brasileira, pois a presença feminina nos espaços de poder ocorre de forma assimétrica. Nas eleições presidenciais o sexo feminino está predominando, pois como disse o jornalista Juan Arias, do El País (2/09/2014): “desta vez a luta é entre duas gigantes, ambas mulheres”.
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As pesquisas de opinião mostram um fato inédito na história brasileira, pois em meio à grande maioria de candidatos masculinos, duas mulheres lideram o primeiro turno (com mais de 70% dos votos válidos)e devem levar a disputa para o segundo turno. Este fato extraordinário ocorreu, até agora, em poucos países do mundo, tal como nas eleições de dezembro de 2013 no Chile. O excepcionalismo do caso brasileiro é que, além do sexo feminino poder monopolizar 100% dos votos na segunda rodada das eleições, poderá haver (segundo as pesquisas atuais) uma transferência de poder de mulher para mulher, fenômeno inédito na história do presidencialismo mundial.
De certa forma, esta situação não é totalmente inesperada, pois o Brasil vive uma fase pós-patriarcal de sua história (embora vários traços patriarcais continuem enraizados nas estruturas tradicionais e arcaicas que inercialmente se mantém como relíquias do passado). Duas mulheres disputando o segundo turno das eleições para a Presidência da República, em 26 de outubro de 2014, será o reflexo de um longo processo de empoderamento feminino e o efeito de uma nova correlação de forças das relações de gênero no país, assim como em outras partes do mundo (ROSIN, 2010).
Dilma Rousseff e Marina Silva são duas mulheres que construíram suas carreiras – profissional e política -de maneira autônoma e sem a tutela masculina. Nas eleições de 2014, entre os candidatos mais bem posicionados, eram os homens que contavam com o “capital familiar”: Eduardo Campos neto de Miguel Arraes e Aécio Neves, neto de Tancredo. As duas mulheres candidatas tiveram uma trajetória mais independente e, pode-se dizer, feminista, embora ambas tenham evitado defender explicitamente a agenda feminista. Os programas das duas candidatas deixam a desejar em termos de uma agenda progressista de gênero para o Brasil.
Dilma Rousseff é branca, filha de imigrante búlgaro e cresceu na classe média de Belo Horizonte, onde estudou em bons colégios católicos. Na juventude, participou da luta contra a ditadura, da resistência armada, sendo presa e torturada. Formou-se em economia e fez carreira profissional em Porto Alegre e atuou na política no PDT, mas sem nunca disputar cargo político no Legislativo. Casou, teve uma filha e descasou. Entrou no PT pouco antes de assumir o cargo de ministra de Minas e Energia. Foi também ministra da Casa Civil. Ambos cargos no governo Lula.
Marina Silva é negra (lembrando que negro é a soma das categorias preta e parda do IBGE e que a cor parda inclui toda miscigenação) e filha de imigrantes nordestinos pobres que foram para a Amazônia.Seus pais tiveram onze filhos, dos quais apenas oito sobreviveram. Marina trabalhou como empregada doméstica e foi alfabetizada aos 16 anos de idade. Formou-se em História pela Universidade Federal do Acre. Começou sua carreira política militando nas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e posteriormente tornou-se evangélica Participou das lutas sindicais e ambientalistas ao lado de Chico Mendes e foi uma das fundadoras da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Ela casou teve dois filhos, separou, casou de novo e teve mais dois filhos. Em 1988, foi a vereadora mais votada em Rio Branco. Em 1990, foi eleita deputada estadual e, nos anos de 1994 e 2002, foi eleita senadora pelo Acre. Foi ministrado Meio Ambiente no governo Lula.
Há quatro anos, no primeiro turno das eleições de 2010, Dilma e Marina – disputando com sete homens- conquistaram 67% dos votos válidos. Naquele momento, este fato foi uma confirmação de que o eleitorado não discrimina as mulheres e pode referendar o sexo feminino quando há boas candidatas no pleito. Os 67% dos votos foram uma pá de cal na tese de que o patriarcalismo domina o comportamento do eleitorado. Em janeiro de 2013, bem antes das manifestações de junho, escrevi um artigo avaliando a possibilidade de um segundo turno entre Dilma e Marina (ALVES, 2013). De fato, em 2014, o Brasil pode se tornar o primeiro país a ter uma alternância de poder totalmente feminina para o cargo máximo da República.
Não se trata de considerar as mulheres melhores do que os homens, ou vice e versa. Os problemas do país vão muito além das desigualdades de gênero. Mas as questões de gênero importam. Diminuir as desigualdades entre homens e mulheres é um passo importante no sentido de reduzir outros tipos de iniquidades sociais. Diminuir a exclusão feminina da política é uma condição necessária – mas não suficiente – para se construir uma sociedade mais justa. Mesmo considerando que o conteúdo da campanha eleitoral tenha ficado aquém do desejado, o Brasil dá um exemplo positivo para o mundo ao garantir um segundo turno totalmente feminino na disputa eleitoral para o cargo máximo do Poder Executivo.
Porém, a despeito das conquistas das mulheres na disputa da Presidência da República, a exclusão feminina parece que vai continuar no Legislativo. O eleitorado é o mesmo, não se tratando portanto, de considerar o eleitor machista ou patriarcal. A explicação para a baixa representação feminina no parlamento não se deve ao sexismo dos/as eleitores/as, mas devido a dois motivos: 1) o tipo de sistema político/eleitoral do país e a forma como foi redigida a política de cotas; 2) a permanência de práticas misóginas dos partidos políticos que, monopolizados pelos homens, centralizam o poder partidário e a distribuição dos recursos das campanhas.
Fazendo um breve histórico da política de cotas de gênero no Brasil, tem-se como marco a decisão do Congresso Nacional – logo após a 4ª Conferência Mundial das Mulheres ocorrida em Beijing – em adotar uma política de cotas para tentar reverter a exclusão das mulheres brasileiras da política parlamentar. A Lei 9.100 de 29 de setembro de 1995, no § 3º do artigo 11º estabelecia o seguinte:
“Vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação de verão ser preenchidas por candidaturas de mulheres”.
Porém, o número candidaturas subiram de 100% para 150% do número de vagas a preencher pelos partidos, significando que houve possibilidade de aumento das candidaturas masculinas. E o pior, o partido era obrigado a reservar os 20% das vagas (posteriormente passou para 30%), mas não era obrigado a preenchê-las.
Dois anos depois houve a aprovação de uma nova Lei eleitoral. O parágrafo terceiro do artigo 10º da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997 ficou assim redigido:
“Do número de vagas resultantes das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo”.
A nova redação da política de cota possibilitou contornar os questionamentos da inconstitucionalidade do mecanismo anterior e deu um caráter mais universalista à política de cotas, dando o mesmo tratamento para os dois sexos. A nova ação afirmativa garantiu o respeito ao princípio “todos são iguais perante a lei” e apenas estabeleceu regras de representação, ou seja, um mínimo de 30% e um máximo de 70% para cada sexo.
Porém, assim como na Lei 9100, a nova redação não garantiu o preenchimento das candidaturas femininas. Os partidos reservavam o piso dos 30% para as mulheres e respeitavam o teto de 70% para os homens, mas não preenchiam as vagas femininas. Na prática, a exclusão feminina continuou, pois os partidos políticos continuaram com suas práticas excludentes, mantendo a desigualdade de gênero nas disputas eleitorais.
Para forçar os partidos a respeitarem o espírito da Lei de Cotas visando aumentar o número de mulheres candidatas e aumentar a equidade de gênero nas listas de candidaturas, e após ampla pressão dos setores progressistas da sociedade, houve uma nova mudança na legislação. Na Lei 12.034, de 29/09/2009, a nova redação da política de cotas ficou assim redigida:
“Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”.
A alteração pode parecer pequena, mas a mudança do verbo “reservar” para “preencher” significou uma mudança no sentido de forçar os partidos a presença das mulheres nas nominatas eleitorais. O ideal é que fosse garantido a paridade de gênero (50% para cada sexo) nas listas de candidaturas. Mas a mudança na redação da lei representou uma oportunidade, mesmo que limitada. A aplicação da Lei 12.034/2009 garantiu o aumento do número de candidaturas femininas nas eleições de 2010, 2012 e 2014.
Um dos resultados da política de cotas foi demonstrar que o déficit de gênero no Legislativo não se deve à falta de mulheres dispostas a participar da corrida eleitoral, como querem fazer crer algumas lideranças partidárias masculinas. O ano de 2014, por exemplo, bateu todos os recordes de candidaturas femininas. Para a eleição da Câmara de Deputados e das Assembleias Legislativas as nominatas dos partidos ficaram acima do piso dos 30% da política de cotas. Dados do TSE, de 08 de setembro de 2014, mostram que no total havia 18.018 homens candidatos (69%) nas eleições gerais de 2014 e 8.122 mulheres (31%). Houve um avanço expressivo no número de mulheres candidatas que eram somente 786 (7%), em 1994. Houve crescimento de 10 vezes entre 1994 e 2014. Neste sentido, a política de cotas cumpriu seus objetivos de aumentar as candidaturas femininas.
Porém, muitas agremiações completaram a lista com candidatas laranjas e, em 2014 como nos anos anteriores, o percentual de mulheres aptas na disputa ficou abaixo do estipulado nas cotas de gênero, sendo 16.348 homens (71,3%) e 6.581 mulheres (28,7%) candidaturas homologadas pelo TSE (em 08/09/2014). Para Deputado Federal havia, no total das pessoas inscritas, 4.867 homens (68,2%) e 2.272 mulheres (31,8%). Para Deputado Estadual (+ Distrital) havia 12.363 homens (68,6%) e 5.650 mulheres(31,4%). Mas considerando as candidaturas aptas, havia para Deputado Federal 4.383 homens (70,9%) e 1.799 mulheres (29,1%) e para Deputado Estadual (+ Distrital) 11.262 homens (71%) e 4.619 mulheres(29%). Contudo, mesmo considerando que as candidaturas aptas ficaram pouco abaixo da cota de gênero, houve um número recorde de mulheres candidatas em 2014. Não faltaram mulheres candidatas, mas sim, falta apoio dos partidos para as candidaturas femininas ao parlamento.
É preciso destacar que, pela primeira vez, o TSE divulgou os dados de cor/raça das candidaturas. Entre todos os candidatos (de ambos os sexos) em 2014, houve 54,9% de brancos (no censo 2010 do IBGE as pessoas que se autodeclararam brancas foi 47,7%), 35% de pardos (43,1% no censo 2010), 9,3% de pretos (7,6% no censo 2010), 0,46% de amarelos (1,1% no censo 2010), 0,33% de indígenas, (0,43% no censo 2010). Portanto, as cores/raças menos representadas nas candidaturas foram: amarela, indígena e parda. Sobrerrepresentados estavam: brancos e pretos. Será interessante analisar os números das pessoas eleitas segundo a categoria “raça”/cor, depois de 5 de outubro.
O fato é que o déficit democrático de gênero no Poder Legislativo, não reflete o avanço social do “segundo sexo” no Brasil. As mulheres brasileiras possuem menores taxas de mortalidade e vivem mais tempo do que os homens. Em 2012, houve 152.013 óbitos por causas externas, sendo 125.253 homens(82,4%) e 26.606 mulheres (17,6%). Desde 1940 as mulheres são maioria dos habitantes do Brasil e,devido à sobre mortalidade masculina por causas violentas, a cada ano aumenta o superávit feminino na população total do país. Em 1932 elas conquistaram o direito de voto e se tornaram maioria do eleitorado a partir de 1998. A cada nova eleição aumenta o superávit feminino no eleitorado. As mulheres entraram em massa em todos os níveis educacionais e já superam os homens em todos os níveis de ensino, incluindo mestrado e doutorado. Cresceu a participação feminina no mercado de trabalho e houve redução do hiato ocupacional e salarial. Obtiveram diversas vitórias na legislação nacional e o reconhecimento constitucional de direitos iguais entre os sexos. São maioria nos beneficiários do Programa Bolsa Família e dos beneficiários da Previdência Social. Nas duas últimas olimpíadas (Pequim, 2008 e Londres, 2012) conquistaram 2 das 3 medalhas de ouro trazidas ao Brasil.
Ou seja, passaram do status de excluídas das Olimpíadas até 1932, para líderes desses esportes no século XXI.
Assim, as mulheres avançaram em muitas frentes e já chegaram ao comando do posto máximo da República. Fato não ocorrido, por exemplo, nos Estados Unidos e França, países com grande tradição democrática. Provavelmente uma mulher estará à frente da Presidência do Brasil em 2015-2018. O grande atraso nas relações de gênero no Brasil ocorre na fronteira da representação parlamentar. O Brasil está no bloco da lanterninha mundial da participação política na Câmara dos Deputados (ALVES,2014). Este é um grande paradoxo de gênero na política existente no país.
Para resolver este paradoxo é preciso estabelecer a paridade de gênero em todos os cargos de poder dentro das agremiações políticas e equidade na distribuição dos recursos de campanha. Mas acima de tudo, é preciso haver uma reforma política, garantindo um processo de democratização radical dos partidos e eleições livres e limpas em todos os níveis.
José Eustáquio Diniz Alves: Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: [email protected]
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