(O Globo, 28/09/2014) A luz se fez durante ótima aula de Renato Noguera, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), mestre em filosofia. No curso sobre mitos femininos, o sobrevoo pela antiguidade grega aterrissou no templo de Atena, onde a bela Medusa acabou punida após ser violada por Poseidon. Impura nos domínios da deusa virgem, a sacerdotisa foi condenada pela senhora da guerra à feiura extrema, capaz de transformar em pedra quem a mirasse. O deus dos mares seguiu impune. Medusa ficou só, sem beleza nem par. Foi impossível não ligar o infortúnio da personagem à certa falta de solidariedade entre as mulheres nos tempos modernos.
NÃO É INCOMUM a associação do infortúnio de Medusa à cultura do estupro, que responsabiliza a vítima pela violência sofrida. Amanda Beatriz Lanes tratou dessa representação em artigo no site “Blogueiras Negras”. A pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada sobre tolerância à violência contra a mulher, alvo de polêmica no semestre passado, também trouxe evidências de perpetuação do pensamento. Quase seis em dez (58,5%) entrevistados concordaram com a frase “Se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”. É raciocínio intolerável, que absolve o criminoso.
Em outro viés, o mito de Medusa remete a fenômeno que o movimento feminista contemporâneo identificou e batizou. Chama-se sororidade o pacto de irmandade e apoio mútuo firmado entre mulheres. Foi o que faltou à Atena na narrativa construída sob a ótica masculina em tempos idos. Se o conceito existisse na Grécia Antiga, Poseidon estaria liquidado. A mitologia se construiria sobre outro modelo de convivência feminina.
Como nunca é tarde para desconstruir velhos padrões e abraçar novos, convém adicionar a expressão ao glossário da corrida presidencial. A campanha, tudo indica, está a uma semana de um inédito segundo turno entre duas candidatas, Dilma Rousseff (PT) e Marina Silva (PSB). O eleitorado feminino, vale lembrar, é maioria e vai decidir o pleito, afirmou a socióloga Fátima Pacheco Jordão em boletim do Instituto Patrícia Galvão.
As duas adversárias dariam contribuição adicional à democracia brasileira, se emprestassem doses de cordialidade ao restante da disputa pelo Planalto. Não foi o que fizeram na primeira fase da campanha. Na propaganda política, a equipe petista compôs marchinha chamando a oponente de “Marina vai com as outras”. Em entrevista, Dilma tachou a adversária de leviana, em resposta à frase da pessebista sobre seu antigo partido ter nomeado “por 12 anos uma pessoa (o ex-diretor Paulo Roberto Costa) para assaltar os cofres da Petrobras”. Quando Marina reclamou do bombardeio nas redes sociais, a candidata à reeleição rebateu dizendo que Presidência não é lugar para “coitadinho”.
Faltou sororidade à Dilma. E à Marina. A ex-ministra do Meio Ambiente não repreendeu o vice-presidente do PPL, quando Fernando Siqueira soltou num almoço a piada sobre sua candidatura ser anulada pelo Ibama por abater um tucano (símbolo do PSDB de Aécio Neves) e uma anta (ofensa gratuita à petista). Num vídeo da campanha, Marina insinuou que Dilma é gorda, ao compará-la a um mangangá, espécie de besouro corpulento de ferroada potente.
O rol de provocações e ofensas pessoais empobrece o debate político. E pior: nivela pelas piores práticas a inédita final eleitoral entre duas brasileiras. Calma, irmãs.
Acesse o PDF: Falta sororidade entre candidatas, por Flávia Oliveira (O Globo, 28/09/2014)