(Folha de S. Paulo, 03/10/2014) Em ao menos 13 ocasiões diferentes, um vírus que infecta macacos foi transmitido a humanos para se tornar o que hoje conhecemos como o HIV. Em só um caso, porém, esse patógeno gerou uma epidemia global. O que propiciou isso, sugere novo estudo, foram transformações sociais humanas, e não características biológicas do vírus.
A nova pesquisa é um rastreamento da história epidemiológica do HIV do grupo M, aquele responsável pela maioria dos 75 milhões de infecções que existem hoje. Essa linhagem do vírus, dizem os cientistas, provavelmente surgiu na República de Camarões, por volta de 1900, mas só começou a se espalhar quando chegou a Kinshasa, na República Democrática do Congo, por volta de 1920.
O vírus gerou uma epidemia regional que se espalhou e se sustentou até 1960, afetando outras cidades na bacia do Congo, graças a um sistema ferroviário eficiente em operação no período de colonização belga. Foi esse HIV, do grupo M, aquele que conseguiu sair da região do Congo e fazer as primeiras vítimas da Aids nos Estados Unidos, na década de 1980.
Essa história foi recontada agora graças a um trabalho coordenado pelo português Nuno Faria, da Universidade de Oxford, e publicado na “Science” que sequenciou o material genético de mais de 1.200 amostras do vírus coletadas em diversas localidades do mundo, cerca de um terço delas na África Central.
Comparando as amostras, era possível determinar quais eram ancestrais de quais; cruzando a informação genética com o mapa da coleta de amostras, os cientistas identificaram Kinshasa como marco zero da pandemia.
Além disso, sabendo o ritmo com que o vírus sofre mutações espontâneas, os cientistas puderam determinar que a epidemia começou a se espalhar por volta de 1920.
Até hoje pesquisadores questionam se a eficácia epidemiológica do HIV de grupo M se deve a alguma característica biológica do vírus, mas o estudo de Faria e seus colegas sugere que o problema é que esse vírus foi parar no lugar certo na hora certa.
Após 1960, com o fim da colonização, o Congo Belga entrou numa sequência de crises políticas e guerras civis que acabou afetando a infraestrutura de transporte do país, impedindo que a epidemia se mantivesse da mesma forma. Foi antes disso que o vírus escapou para o resto do mundo, dizem os cientistas.
OPORTUNISMO
“Houve uma janela temporal de oportunidades em Kinshasa que facilitou a expansão epidêmica do grupo M do vírus”, disse Faria à Folha, por e-mail. “Além dos transportes, alterações sociais como mudanças nos padrões do trabalho sexual, bem como iniciativas de saúde pública que levaram ao uso de seringas não esterilizadas, podem ter contribuído para tornar o HIV uma pandemia.”
Se o HIV do grupo M não tivesse encontrado logo uma população concentrada e interligada para se sustentar como epidemia, poderia ter desaparecido espontaneamente em alguns anos.
Vírus do grupo O tiveram disseminação regional na bacia do Congo tão ampla quanto o M entre 1920 e 1960, e ambos deixaram de crescer depois disso, mas o M já tinha sido exportado. O estudo é uma receita de como de um vírus se torna uma pandemia.
Novas linhagens do HIV continuam surgindo do contato com macacos sem terem causado, ainda, uma catástrofe como a do grupo M. O grupo P foi achado em humanos em 2009, nos Camarões, e o grupo I foi descoberto em 2012, na Costa do Marfim.
Rafael Garcia
Acesse o PDF: Pandemia de HIV começou em 1920 às margens do rio Congo, indica estudo (Folha de S. Paulo, 03/10/2014)