(Folha de S. Paulo, 23/11/2014) A comissão de Justiça do Congresso argentino, cujas sessões geralmente ficam vazias, encheu-se subitamente de deputados em uma tarde no fim do mês passado.
Liderados pela congressista governista Adela Segarra, políticos que defendem a descriminalização do aborto dominaram o encontro e colocaram o tema na pauta. Atualmente, o país só permite o aborto quando a gravidez é um risco para a saúde da mulher ou fruto de estupro.
A um ano das eleições presidenciais, deputados governistas a favor da descriminalização aceleraram a tentativa de angariar apoio à causa.
Os kirchneristas que impulsionam o projeto, no entanto, enfrentam um adversário quase imbatível para se aprovar leis na Argentina: Cristina Kirchner.
“A interrupção voluntária da gravidez divide os kirchneristas, mas não ao ponto de rompê-los ideologicamente. A condução do kirchnerismo é da Cristina. Ela pode mudar de opinião”, diz Segarra.
Seria uma mudança histórica, diz a biógrafa da presidente Laura di Marco. Cristina sempre foi favorável à criminalização do aborto e isso “tem a ver com as convicções dela, que é moralmente muito conservadora”, explica.
No livro “Cristina Fernández, la Verdadera História” (sem tradução em português), ela afirma que a formação intelectual da presidente foi marcada por um forte catolicismo de pequenas cidades onde cresceu e viveu (Tolosa e Rio Gallegos).
“A aproximação com o papa Francisco potencializou suas opiniões conservadoras”, diz Di Marco.
Leis destoantes dessa moral, como a do casamento civil igualitário –união de casais homossexuais, nos mesmos moldes legais que a união heterossexual–, foram aprovadas quando Néstor estava vivo, diz a deputada Segarra, que afirma que o filho do casal, Máximo, tem posições mais progressistas.
“Néstor enquadrou muitos deputados, principalmente antigos militantes montoneros [grupo peronista de esquerda dos anos 1970] que eram contra. Se não fosse ele, não teria passado”, acrescenta a parlamentar, ela própria montonera que se exilou no Brasil enquanto militares ocupavam a Casa Rosada.
Segarra diz divergir de grande parte da esquerda tradicional argentina, que chegou ao poder com os Kirchner e tem opiniões contrárias à legalização das drogas, do aborto e ao casamento gay.
MÚSICA
Ela descreve uma música que grupos de esquerda cantavam nos anos 70: “No somos putos, ni faloperos, somos soldados de las FAR y montoneros” (em tradução livre: não somos bichas nem drogados, somos soldados das forças armadas revolucionárias e montoneros).
“É muito difícil aprovar projetos [sem o apoio do governo]; o Parlamento argentino é quase o escrivão da Casa Rosada”, afirma Di Marco.
A esperança dos pró-descriminalização é que, mesmo com uma presidente que não tenha um histórico de leis progressistas como a do casamento gay, o tema do aborto permaneça em discussão, forçando o debate nas comissões pelas quais o projeto precisa passar: as de Saúde, Família e Justiça.
A última tentativa de colocar a lei em pauta não deu certo. A presidente da comissão, a oposicionista Patricia Bullrich, não deixou o tema ser tratado e depois publicou uma carta aberta na qual afirmou que sofreu “uma emboscada” promovida pelos “grupos pró-aborto”.
“Não houve manobra nenhuma, os deputados são livres para irem à comissão quando vão ser debatidos temas que eles consideram importantes”, diz o legislador governista Leonardo Grosso.
Felipe Gutierrez
Acesse o PDF: Aborto divide governistas na Argentina (Folha de S. Paulo, 23/11/2014)