(Compromisso e Atitude, 02/12/2014) O Poder Judiciário está buscando caminhos para enfrentar o grave problema do assassinato de mulheres pela condição de ser mulher – o chamado feminicídio. Suas motivações mais comuns são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda da propriedade sobre as mulheres, frequentes em uma sociedade marcada pela desigualdade de gênero como a brasileira.
Pesquisas baseadas em decisões de julgamentos de casos em que houve o assassinato de mulheres e levantamentos de casos reportados na mídia indicam que o feminicídio íntimo é o que mais preocupa no País, uma vez que, nos dois casos de estudo, a residência é o local que mais aparece como palco para os assassinatos e a maioria dos autores é parceiro ou ex da vítima, vindo em seguida os familiares.
Os dados foram apresentados na oficina “Feminicídio: Assassinato de Mulheres por Razões de Gênero”, que aconteceu nos dias 26 e 27 de novembro, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em Brasília. Promovida por uma parceria entre o CNJ, a ONU Mulheres e a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, o encontro reuniu juízes de diversos Estados, titulares das Coordenadorias da Mulher dos Tribunais de Justiça, gestores e pesquisadores para discutir a abordagem da Justiça quando a violência contra as mulheres chega ao extremo do assassinato.
Os presentes lembraram ainda a triste estatística que coloca o Brasil entre os países com maior índice de homicídios de mulheres no mundo: com uma taxa de 4,4 assassinatos em 100 mil mulheres, o Brasil ocupa a sétima posição em um ranking de 84 nações, segundo dados do Mapa da Violência 2012 (Cebela/Flacso). “Como muitos casos não são registrados, os números podem ser ainda maiores”, ponderou Joana Chagas, representante da ONU Mulheres.
De acordo com a secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres, Aparecida Gonçalves, nesse contexto, a tipificação penal do feminicídio é apontada como um caminho para qualificar o problema, tirando da invisibilidade o assassinato de mulheres atrelado à discriminação de gênero. O conhecimento da real dimensão do problema, segundo a secretária, é fundamental para que o Estado brasileiro – Executivo, Legislativo e Judiciário – assuma sua responsabilidade, implementando ações e políticas públicas para coibir este que é um verdadeiro “crime de ódio”.
A representante do Instituto de Direito Público, Soraia Mendes, explicou que os casos de feminicídio não podem ser tratados como um homicídio isolado, pois envolvem a ideia de que os indivíduos têm propriedade sobre outros. ”Geralmente, a ‘justificativa’ para agredir e assassinar é que as mulheres não corresponderam aos papéis de gênero que são esperados delas”, explica a especialista, que destaca a importância de trazer o contexto de discriminação de gênero para a investigação, a fim de evitar que ocorra na própria resposta estatal a reprodução de discriminações de gênero – muito comuns, por exemplo, nas teses de crime passional, em que se busca justificar o crime do réu por meio da culpabilização da própria vítima pela violência sofrida. “Não existe crime passional, existe violência de gênero. Não existe possibilidade de que o amor provoque violência. Existe sim uma necessidade de intervenção do Estado em situações como esta; o Estado não pode ser conivente”, destaca a especialista.
Tipificação no Brasil
A oficina também discutiu o posicionamento dos magistrados sobre a tipificação do feminicídio no Código Penal brasileiro. No momento encontram-se em debate o projeto que tramita no Senado Federal por iniciativa da CPMI da Violência contra a Mulher (PLS nº 292/2013) e o substitutivo à proposição apresentado naquela Casa Legislativa pela senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), acrescentando a prática de tortura como circunstância que configura o crime de feminicídio e alterando a lei de crimes hediondos para incluir entre eles o feminicídio. O projeto está no Senado e ainda terá de tramitar na Câmara dos Deputados.
Desde outubro somou-se à discussão uma resolução aprovada pelos promotores de Justiça participantes de oficina similar realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). A resolução propõe alterar significativamente a concepção prevista no projeto e no substitutivo analisados no Senado, que tipificam o feminicídio como qualificadora do homicídio. Os promotores decidiram propor a inclusão de um parágrafo ao artigo 121 do Código Penal, definindo o feminicídio como crime de assassinato cometido “contra a mulher por razões de gênero em qualquer situação de violência doméstica e familiar, nos termos da legislação específica, por preconceito ou discriminação da condição social da mulher”. A pena seria aplicada “sem prejuízo das sanções relativas aos demais crimes a ele conexos”. Na proposta dos promotores de Justiça, a redação deve ser genérica e não tão específica como descrita no PLS 292/2013, sendo que o feminicídio não passaria a ser um tipo penal específico.
Em sua fala durante a oficina no CNJ, o juiz Álvaro Kalix Ferro, titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Porto Velho, lembrou que é necessário ter cautela ao propor mudanças ao projeto que já está tramitando “para não correr o risco de atrasar ainda mais o debate”. O juiz também frisou que “nós, juízes especializados, sabemos que ainda hoje temos muita dificuldade com a interpretação da Lei [Maria da Penha] nos Tribunais de Justiça. Se não for apontada uma descrição específica, será mais difícil”.
No painel anterior, a advogada Carmen Hein, que assessorou a CPMI que investigou a situação da violência contra a mulher no Brasil, já havia destacado que, na maioria dos países que tipificaram a violência motivada por razões de gênero, as cortes constitucionais foram provocadas a se posicionar sobre a tutela penal específica e, como ocorreu no Brasil em 2012 em relação à Lei Maria da Penha, pacificaram jurisprudência favorável ao reconhecimento das desigualdades socialmente construídas sobre o feminino e o masculino como fatos relacionais à motivação das práticas violentas contra as mulheres.
Para a coordenadora do Movimento Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar do CNJ, conselheira Ana Maria Amarante, a alteração da legislação é um passo importante para a implementação das políticas públicas necessárias para coibir o assassinato de mulheres no País.
Ao final do debate os juízes participantes da oficina optaram por não tomar um posicionamento formal durante o evento, considerando o fato de que deve haver um debate mais amplo com magistrados de todo o País. Optou-se então pela constituição de um grupo de trabalho sobre o tema, que deve envolver membros do Fonavid (Fórum Nacional de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher) e de Tribunais de Justiça. O CNJ vai articular a conformação desse GT.
Protocolo de investigação
Além da criação do tipo penal específico, outra ferramenta que pretende ajudar a tirar o problema do feminicídio da invisibilidade e garantir que os autores sejam punidos é a adoção de um protocolo para a investigação dos casos nas diferentes regiões do Brasil.
Durante a oficina, a consultora da ONU Mulheres e pesquisadora Wânia Pasinato apresentou a proposta do Escritório Regional do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e o Escritório Regional da ONU Mulheres, que preparam a adaptação para a realidade brasileira do Modelo de Protocolo Latino-Americano de Investigação das Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero.
A falta da perspectiva de gênero na investigação de crimes cometidos contra mulheres, muitas vezes, prejudica tanto a condução de casos específicos para a devida responsabilização dos autores dos crimes quanto o conhecimento da verdadeira dimensão da violação dos direitos humanos das mulheres no Brasil.
Para garantir a capilaridade, a ideia é que, depois que o protocolo for adaptado ao contexto nacional, os diferentes Estados brasileiros formem grupos técnicos envolvendo atores-chave, como os sistemas de Segurança, Ministérios Públicos e Tribunais de Justiça Estaduais, para promover uma segunda leva de adaptação e apropriação, ajustada à realidade local, permitindo, assim, que o protocolo se torne ferramenta prática em diferentes contextos (saiba mais sobre a proposta).
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