(O Globo, 25/02/2015) Biógrafo Clayborne Carson apresenta a provável agenda do líder negro americano: ‘Ele apoiaria os que ficaram para trás’
Em tempos de “Selma”, na ficção, e de Ferguson (Missouri, EUA) e Cabula (Salvador, BA), na vida real, o movimento negro reconstitui a agenda de Martin Luther King. Referência na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, nos anos 1960, e planeta afora, desde então, o líder morreu sem testemunhar avanços e retrocessos da causa que abraçara em vida, a construção da igualdade. Biógrafo no Nobel da Paz de 1964, Clayborne Carson, da Stanford University, tratou das prováveis prioridades de Dr. King na sociedade dita “pós-racial e pós-política” deste início de século XXI, numa videoconferência organizada pelo Consulado Americano no Rio, ontem. Dois temas concentraram o interesse do grupo de brasileiros convidados: os assassinatos de jovens negros e a persistência da desigualdade, mazelas que aproximam Brasil e EUA.
A cerimônia do Oscar 2015, domingo passado, em Los Angeles, premiou “Glory”, da trilha do filme de Ava DuVernay sobre a marcha que Luther King liderou e tornou ícone da lei sobre o direito dos negros ao voto. Selma, título do longa, é a cidade do Alabama onde ocorreu a manifestação, em 1965. A repressão violenta do ato histórico pela polícia dialoga com recentes homicídios de jovens afrodescendentes por policiais brancos nos EUA. A morte de Michael Brown, em Ferguson, em agosto de 2014, desencadeou uma onda de protestos em todo o país. Ovacionada no Oscar, a bela canção de John Legend e Commom mistura gospel e rap e faz menção aos dois episódios.
No Brasil, a dez dias do carnaval, a polícia baiana, de só uma vez, matou 12 jovens numa suposta troca de tiros na Cabula, periferia de Salvador. Foi episódio recente mais estrondoso de uma rotina de assassinatos de jovens negros brasileiros.
Na conversa com os brasileiros, conduzida por Carlos Alberto Medeiros, tradutor da “Autobiografia de Martin Luther King”, o professor Carson evocou o conceito de não violência ativa que o reverendo absorveu do pacifista indiano Mahatma Gandhi: “Temos de avançar não apenas para uma polícia não violenta, mas para um mundo não violento. As armas são feitas nos EUA e em países desenvolvidos da Europa e vão parar na África, em todos os guetos. Você não acaba com isso dizendo para jovens negros não serem violentos. Eles percebem a hipocrisia do discurso. Os princípios da não violência têm de descer e subir na escala social. É uma luta que diz respeito a todas as pessoas”.
Carson também tratou da desigualdade crescente no EUA e no mundo. E afirmou que, se vivo, Dr. King se ocuparia dos afrodescendentes que não se beneficiaram das décadas de políticas de ação afirmativa no país natal: “Algumas ações permitiram a entrada de negros em escolas de brancos. Isso elevou a integração nesses locais. Mas a educação dos que não se integraram não melhorou. Sem isso, a possibilidade de sair da pobreza é muito pequena. Hoje, as pessoas protestam nas ruas contra a sensação de estarem ficando para trás. Se Martin estivesse aqui, apoiaria os que ficaram para trás. Ele iria revirar o fundo do barril”. #Ficaadica
Pesar pela morte brutal de Rosângela Rigo e Lurdinha Rodrigues, ambas da Secretaria de Políticas para Mulheres, e de Célia Maria Escanfella, ex-Instituto Patricia Galvão. Nomes do movimento feminista, elas foram vítimas de acidente de carro numa rodovia da Bahia, no sábado de carnaval. Farão falta na agenda de lutas. Luto.
Nota da redação: A companheira Célia Maria Escanfella, citada na nota de pesar acima, não era membro integrante do Instituto Patrícia Galvão. Por e-mail solicitamos a correção da nota publicada por Flávia Oliveira.
Acesse o PDF: Martin Luther King hoje, por Flávia Oliveira (O Globo, 25/02/2015)