Uma ponte de Selma a Ferguson, por Cristina F. Pereda

16 de janeiro, 2015

(El País, 16/01/2015) Era março de 1965 e a polícia de Selma, Alabama, se protegia com máscaras de gás segundos antes de avançar sobre uma das marchas pelos direitos civis das minorias raciais dos Estados Unidos. A imagem daquele domingo sangrento se repetiu no verão passado em Ferguson, depois da morte do jovem Michael Brown pelos tiros de um policial. Os protestos contra a impunidade da polícia criaram um quadro perfeito para a estreia de Selma, dirigido por Ava DuVernay, vencedor de um Globo de Ouro no fim de semana passado e indicado ao Oscar de melhor filme. Rodada antes que a morte de Brown ou Eric Garner em Nova York voltassem a dividir o país, a obra, que reúne os argumentos esboçados por Martin Luther King há meio século, relembra a dolorosa vigência daquela luta no presente.

Manifestantes que tentaram cruzar a ponte de Selma, em 1965, são alvejados com gás lacrimogêneo. (Foto: AP)

Selma começa com a tentativa frustrada da ativista Analee Cooper —interpretada por Oprah Winfrey, produtora do filme— de registrar-se como eleitora. Centenas de afro-americanos foram submetidos a impostos e exames adicionais para conseguir exercer um direito reconhecido pela Constituição. Atualmente, organizações descendentes do movimento pelos direitos civis —respaldadas pelo presidente Obama— denunciam a exigência de documentos de identidade adicionais como uma reinvenção dessa característica discriminatória.

Em Selma, o reverendo Martin Luther King vai ao Salão Oval do presidente Lyndon B. Johnson para exigir o direito a voto das minorias e o fim da violência policial. O democrata acaba de colocar sobre a mesa seu histórico plano contra a pobreza. “O assunto do voto”, diz a King em uma de suas reuniões, não era então prioritário. Apesar de as leis dos direitos civis de 1964 e 1965 levarem a assinatura de Johnson, DuVernay decidiu colocar King no centro da narrativa, com o governante à sua sombra.

O ativista é o agitador, o estrategista, a iniciativa lhe pertence. Ele pede ao presidente do país mais poderoso do mundo que proteja os cidadãos negros e respeite seu direito de se manifestar. Johnson se vê obrigado a suplicar para um ativista que não o pressione com mais marchas, com mais mortos nas mãos da polícia do sul. “Você é um manifestante e tem um problema”, diz ele a King em uma cena. “Eu sou o presidente e tenho cem mais um.” Esse retrato do presidente, considerado injusto pela crítica, pode ter custado um maior reconhecimento da obra de DuVernay.

Mas a história de Selma não é a de um dos presidentes mais admirados dos EUA, e sim a de uma comunidade de cidadãos capaz de articular as demandas de King com a simples tentativa de cruzar uma ponte rumo à história. O primeiro grupo que tentou atravessá-la foi recebido por tropas a cavalo, gás lacrimogênio e chicotadas. A publicação dessas imagens na imprensa foi uma das cartadas mais esperadas por King durante os primeiros anos do movimento.

A ponte Edmund Pettus de Selma, Alabama, atualmente. (Foto: Jim Young/REUTERS)

David Olewoyo, indicado a um Globo de Ouro por sua interpretação do reverendo, defende que essa mesma estratégia não funcionaria atualmente. “Hoje temos uma situação na qual esse tipo de atrocidade é gravada ao vivo e mesmo assim as regras do jogo são manipuladas”, explicou o ator na apresentação da obra no Festival Internacional de Cinema de Toronto, em referência ao vídeo da morte de Garner. “Os promotores são encarregados de acusar os policiais com quem trabalham diariamente. Precisamos de uma autoridade independente que vigie a polícia.”

A falta de avanços depois da agressão policial aos manifestantes inspirou duas outras tentativas de se marchar de Selma até Montgomery. O reverendo conseguiu uma autorização judicial para chegar ao Capitólio do Alabama e afirmar ali que “o arco do universo moral é amplo, mas se inclina para o lado da justiça”. Pouco depois, Johnson pronunciou um discurso em defesa do direito ao voto, entoando o evangelho do “We shall ovrecome”, uma virada para um movimento que sabia assim que não havia como voltar atrás. Em 1965, o presidente democrata, que nunca contou em seu programa com uma lei federal que ampliasse as proteções às minorias raciais, assinava o texto junto com o reverendo que fez história com um sonho.

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