(G1/Ribeirão e Franca, 27/02/2015) Versão eletrônica de publicação para calouros traz perfil positivo do acusado. Estudante do curso de medicina denunciou estupro em agosto de 2014
O estudante de medicina acusado de estuprar a colega de classe e ex-namorada no campus da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto (SP) foi descrito em um manual produzido para os calouros de 2015 do curso como uma pessoa ‘gente boa’ e ‘confiável’. A informação foi dada pela vítima do crime no último dia 20 de fevereiro, durante depoimento prestado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), que investiga o caso.
A jovem, de 19 anos, que atualmente cursa o segundo ano de medicina, foi estuprada em agosto do ano passado. Um processo corre em segredo na Justiça e o crime também é alvo de uma sindicância na universidade, que pela primeira vez admitiu investigar um caso recente de estupro no campus de Ribeirão Preto. A apuração também é feita por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Alesp.
Segundo relato da estudante, os alunos do primeiro ano da Faculdade de Medicina recebem um manual do calouro oficial, elaborado pela diretoria da universidade, e outra publicação não oficial, feita pela comissão de formatura da turma dos veteranos do segundo ano. “A ideia desse manual é divertir calouros e informar um pouco. Tem algumas brincadeirinhas acerca das aulas, apelidos que dão a alguns professores e uma descrição de cada um dos veteranos”, explica.
A publicação foi disponibilizada aos veteranos do curso antes mesmo do início do ano letivo, em uma versão eletrônica postada em uma página no Facebook. A jovem conta que fez o download do material, e quando viu o conteúdo se deparou com uma descrição positiva acerca do ex-namorado. “Eu baixei para ler, dar risada. De repente eu me deparo com a descrição dele no meio das coisas. Na hora eu enlouqueci. Foi muito difícil para mim ler que ele era uma pessoa ‘legal’, ‘gente boa’, um ‘boa conversa’, uma pessoa ‘confiável’. As últimas coisas que eu falaria dele seriam essas”, diz.
A estudante resolveu entrar em contato com os representantes da comissão de formatura para questionar a publicação. Ao pedir para que a descrição do acusado fosse retirada do manual, os estudantes, a princípio, se negaram a fazê-lo. “Pedi para tirar porque aquilo estava me magoando profundamente. Eles disseram que colocaram [a descrição] porque não sabiam o que estava acontecendo com ele agora. Falei: não sabem? Ele está passando por um processo porque está sendo acusado de estupro. Ele está em São Paulo, e não vem às aulas porque tem uma medida protetiva comigo expedida pela Justiça. E eles disseram: ah, a gente não sabia, mas o material já foi para a gráfica. A gente não pode fazer nada”, afirma.
A vítima do estupro, então, questionou o que poderia acontecer caso o material vazasse, assim como um hino supostamente racista da bateria do curso de medicina, conhecida como Batesão, que também é alvo de investigação na CPI da Alesp. “Aí a conversa mudou. O presidente da comissão de formatura disse que se responsabilizaria pessoalmente pela descrição dele [acusado] no manual. No dia seguinte, eles foram até a gráfica e retiraram. O manual impresso foi sem a descrição”, conta.
Mesmo com a entrega do material aos calouros sem o perfil do acusado, a estudante diz ter ficado indignada com a iniciativa dos estudantes que chegaram a produzir uma descrição positiva do jovem. “A questão é que alguém entregou essa descrição para o manual do calouro e a comissão de formatura aprovou. O manual do calouro para mim foi a gota d’água. Uma descrição falando que ele era ‘gente boa’. Gente boa? Ele é um aluno processado. Um estuprador”, conclui.
O caso
O crime aconteceu no dia 8 de agosto de 2014, próximo a um lago no campus da USP em Ribeirão Preto. O acusado é colega de turma e ex-namorado da vítima, e segundo a jovem estava inconformado com o término do relacionamento. No dia do estupro, a estudante registrou boletim de ocorrência na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), e passou por exame de corpo de delito na Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas (HC-UE).
Na ocasião, a diretoria da Faculdade de Medicina foi acionada e uma sindicância administrativa foi instaurada para apurar o caso. Ainda no dia do crime, o suspeito do estupro foi levado por um amigo até a ala de psiquiatria do HC-UE, onde o jovem, que relatava estar com depressão, ficou internado.
No depoimento prestado à Alesp no dia 20 de fevereiro, a estudante afirma que é tratada com rejeição por parte dos colegas de curso, que segundo ela encaram a repercussão do crime com desaprovação. “Você vê um olhar [das pessoas] que já deixou de ser de dúvida e já é um olhar de desaprovação. Porque eles me tomaram como o motivo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto estar sendo alvo nessa CPI. É você, porque você foi lá e abriu a sua boca”, afirma.
A jovem também critica a conduta da diretoria da Faculdade de Medicina acerca do andamento da sindicância administrativa instaurada na universidade. Segundo a estudante, a direção, além da demora em ouvi-la formalmente, ainda não deu nenhum parecer sobre a conclusão das investigações.
Em nota, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) informou que a sindicância que apura a denúncia de estupro no campus ainda está em andamento e que somente após o fim do processo serão decididas quais medidas administrativas serão tomadas.
Segundo a FMRP, a direção presta apoio médico e psicológico à aluna desde o início por meio do Hospital das Clínicas da USP, que possui serviço especializado para suporte a vítimas de violência sexual.
A FMRP informou ainda que, desde a denúncia, o aluno envolvido não frequenta as aulas, segundo seu pai, por decisão da família. O estudante, de acordo com a faculdade, não pode ser suspenso até que a sindicância instalada seja encerrada.
Fernanda Testa
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