(Folha de S. Paulo, 18/04/2015) Não seria mais sensato considerarmos irrelevante o sexo ou o gênero de qualquer pessoa?
A ideia de que existam apenas dois sexos, separados pela presença ou ausência de um cromossomo Y, é simplista. Eles podem dizer uma coisa, enquanto ovários, testículos, hormônios e a anatomia sexual indiquem outra direção.
Descritas como distúrbios de desenvolvimento sexual, condições intersexuais ocorrem em 1% dos seres humanos.
Claire Ainsworth publicou uma revisão sobre o tema na revista “Nature”, uma das mais respeitadas no mundo científico. A discussão se ateve ao lado biológico, não foram abordados aspectos comportamentais.
Quando a genética é levada em consideração, a linha divisória entre os sexos fica nebulosa. Pequenas variações nos genes envolvidos no desenvolvimento sexual exercem efeitos sutis ou marcantes na anatomia e na fisiologia.
Estudos recentes mostram que somos formados por células geneticamente díspares, algumas das quais com cromossomas sexuais que não combinam com os do resto do organismo. A diversidade existente nos tecidos de uma pessoa nem sempre se enquadra na ortodoxia binária: masculino/feminino.
Até a quinta semana de vida o embrião tem potencial para formar órgãos de ambos os sexos. A partir da sexta, surgem as estruturas gonadais que formarão as tubas e o útero da futura menina ou os dutos eferentes, vesículas seminais e os epidídimos do futuro menino.
O ambiente hormonal gerado por ovários ou testículos condicionará o desenvolvimento dos órgãos sexuais externos e, na puberdade, das características secundárias.
Já desequilíbrios entre as moléculas responsáveis por essas etapas causarão efeitos dramáticos na definição do sexo.
Mutações nos genes que controlam tais eventos moleculares podem resultar em características tipicamente femininas em indivíduos XY, ou masculinas em pessoas XX.
Trata-se de um processo complexo de diferenciação, no qual a identidade das gônadas e dos caracteres sexuais secundários emerge num contexto entre duas redes opostas de genes, uma das quais inibe a expressão da outra.
Modificações da estrutura desses genes e das moléculas codificadas por eles deslocam o equilíbrio das características sexuais para torná-las mais condizentes ou mais distantes do binário XX ou XY.
A conclusão é que, do ponto de vista genético, existe entre as mulheres e os homens típicos um espectro de pessoas com variações cromossômicas sutis, moderadas ou acentuadas. Neste último caso, as gônadas chegam a ser mistas (ovotestis), os cromossomas podem ser de ambos os casos, ou uma mistura, e os genitais externos têm aparência ambígua.
O dogma de que cada célula contém exatamente o mesmo set de genes está ultrapassado. Em alguns casos, os cromossomos se misturam no óvulo fertilizado, de modo que um embrião que iniciou como XY pode perder o cromossomo Y em um grupo de células (mosaicismo).
Se a maioria delas for XY, a aparência física será de homem. Se a maioria for XX, a mulher terá ovários atrofiados e baixa estatura (síndrome de Turner).
Cromossomos de sexos diferentes na mesma pessoa também surgem quando dois óvulos fertilizados se fundem no início do desenvolvimento (quimerismo), distúrbio que ocorre em 1% dos nascimentos.
Nos anos 1970, ficou demonstrado que células-tronco do feto cruzavam a placenta, caíam na circulação materna, e não eram rejeitadas (microquimerismo).
Outras células seguiam no caminho oposto: da mãe para o feto.
Vinte anos mais tarde, nova surpresa: essas células podem sobreviver décadas. Foram encontradas células XY até no cérebro de mulheres autopsiadas, a mais velha das quais tinha 94 anos.
Células com essa origem se integram aos tecidos em que se instalam, adquirindo funções especializadas –como a de formar novos neurônios, por exemplo.
Hoje, sabemos que células XX e XY se comportam de forma diversa, e independem de hormônios sexuais.
À medida que a biologia deixa claro que o conceito de sexo envolve um espectro, a sociedade e as leis terão que decidir como traçar a linha divisória entre os gêneros.
Devem ser considerados os cromossomos, as células, os hormônios ou a anatomia externa?
E o que fazer quando esses parâmetros se contradizem?
No final, a revisão da Nature propõe: “Diante de tal complexidade para identificar o sexo de uma pessoa, não seria mais razoável perguntarmos como ela se sente?”
Acesse o PDF: O sexo redefinido, por Drauzio Varella (Folha de S. Paulo, 18/04/2015)