(Jornal do Campus, 24/04/2015) Casos de estupro na USP e propagandas ofensivas evidenciam a desigualdade de gênero
“Tem-se a crença de que as mulheres, em geral, são bastante calmas, mas as mulheres sentem a mesma coisa que os homens”, disse Jane Eyre, personagem-título do romance de Charlotte Brontë, publicado em 1847. Volto tanto no tempo, pois, perante os casos de violência contra mulheres, recentemente denunciados na USP, a fala ousada da heroína ainda se mostra fundamental. Infelizmente, os quase 170 anos que nos separam da obra de Brontë parecem míseros dias, e precisamos lembrar constantemente que mulheres possuem sentimentos e vontades, assim como homens.
Eu volto ainda mais no tempo para encontrar Helena, personagem motivadora da mítica Guerra de Troia, que teria acontecido por volta de 1300 a.C. Helena foi dada a Páris pela deusa Afrodite como coisa que se dá ou recebe. E depois, roubada de seu palácio – como coisa que se rouba e leva embora – iniciando-se assim o conflito. Helena foi “coisificada”, levada ao nível de objeto inanimado, como mulheres vítimas de abusos são encaradas por seus agressores.
Jane Eyre e Helena parecem distantes de nós e citá-las pode soar anacrônico, mas eu poderia enumerar outros tantos nomes de mulheres da literatura e da história que sofreram a realidade que mulheres vivem hoje. Os estupros contra alunas da Faculdade de Medicina da USP, que começaram a ser relatados em meados de novembro passado, ainda desencadeiam novas denúncias de abusos contra mulheres na universidade. A série de atos violentos revela que as mulheres ainda são encaradas como coisas que podem ser roubadas e violadas com naturalidade, assim como foi Helena de Troia.
Assédios e abusos contra mulheres as colocam em condição de objetos fragilizados, como produtos expostos em prateleiras de lojas que são violados ou furtados facilmente, a qualquer momento e sem ninguém se dar conta. A comparação parece bastante rude, e de fato é. Mas não é isso mesmo que caracteriza um estupro? Relações sexuais sem consentimento cometidas por meio de força, inibição ou constrangimento não são, efetivamente, atos em que os agressores violam suas vítimas como se fossem objetos?
A pressão para que as garotas não reportem os casos de abuso, a fim de não prejudicar os alunos agressores nem criar escândalos na universidade, também mostra como as mulheres estão em segundo plano – quando deveriam, como vítimas, ser a prioridade. A verdade é que as mulheres estão, quase sempre, em segundo plano. Elas ganham 30% menos que os homens que realizam as mesmas funções, de acordo com dados de 2014 do IBGE, e exercem menor participação e representação política, segundo a Secretaria de Políticas para Mulheres. Nas últimas eleições para vereadores, em 2012, apenas 31,9% dos candidatos eram mulheres, segundo o TSE.
Casos de abusos sexuais são extremos, mas existem diversos momentos cotidianos em que as mulheres também são “coisificadas”, de modo quase imperceptível, mas real. Mulheres devem ser manequins de vitrine, por exemplo, com corpos impecáveis que vistam roupas da moda. Elas também devem ser robôs programados por homens para limpar, passar e cozinhar. Só falta o controle remoto, mas isso não é um grande problema.
Muitas mulheres não precisam de controle remoto para se “coisificar”, pois são condicionadas a gostar de agradar aos homens. Para muitas, é motivo de orgulho estar em forma e se vestir bem para atraí-los, ou cozinhar para conquistá-los pelo estômago. As mulheres mimam os homens, e eles esperam que elas os sirvam cada vez mais. A condição de subserviência se torna natural, e o que era mimo se torna obrigação.
Em contrapartida, mulheres não podem exigir nem esperar nada dos homens, e qualquer feito trivial que eles façam por elas deve ser considerada grandiosa. A coleção de esmaltes “Homens que amamos” da Risqué exemplifica bem a questão, pois faz um “tributo aos pequenos gestos diários dos homens”, como diz seu institucional. Trata-se de uma coleção que expressa gratidão a ações banais, que são vistas como grandes favores. Mas André merece mesmo ser exaltado por fazer o jantar? E Leo deve ser louvado por mandar flores? Eu acho que não.
Rumo a minha conclusão, volto à fala de Jane Eyre. Ela tinha o desejo de conhecer o mundo e vivê-lo intensamente, como os homens de sua época faziam. As mulheres hoje ainda sofrem da mesma estagnação da heroína. Apenas quando elas forem vistas e também se reconhecerem como seres humanos iguais aos homens, com os mesmos direitos, sentimentos e capacidades, é que poderão viver livremente e sem medo para expandir seus próprios horizontes.
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