O que a justiça não vê, as mulheres sentem, por Maria Gabriela Manssur

01 de setembro, 2017

No texto de estreia de Gabriela Manssur, a Promotora de Justiça comenta os casos de feminicídios e estupros que ocorreram nos últimos dias

(Marie Claire, 01/09/2017 – acesse no site de origem)

Recebi uma mensagem me convocando para um apagão feminino no Facebook. Aderi claro, mas sinto que esse apagão já está acontecendo há praticamente um mês: o apagão dos direitos das mulheres.

Primeiro o caso do feminicídio da Mayara Amaral, que foi brutalmente assassinada. Num primeiro momento, o agressor tentou dissimular sua conduta feminicida para um crime de latrocínio, mas  mudou a versão e confessou: “Matei num estado de fúria”.

Depois, quatro outros feminicídios: mulheres de todas as idades e classes sociais, mortas pela condição do gênero feminino, mostraram ao que todas nós estamos sujeitas. Crimes cometidos dentro de suas casas, na frente dos filhos, com requintes de crueldade: crimes de ódio contra as mulheres.

Mas não parou por ai: tivemos o estupro cometido contra a jornalista Clara Averbuck em um Uber, em que ela, como vítima, preferiu não procurar a Justiça.

E, por fim, o que causou mais indignação, foi o estupro (sim, estupro) de uma mulher em um transporte público – um homem ejaculou sobre ela. E, pasmem, no mesmo dia em que o Tribunal de Justiça lançou a campanha “Juntos podemos parar o abuso sexual nos transportes”.

Mas o que mais nos surpreende, além da gravidade dos casos, é a forma como os direitos das mulheres vêm sendo encarados. Crimes de menor potencial ofensivo? Pode ser pra justiça, mas não para nós, mulheres.

A discussão que se estabelece no caso do ônibus é: qual o crime cometido? Se para alguns é contravenção penal, em que há a possibilidade de aplicação de penas alternativas, sem sequer dar início a um processo penal para apuração de culpa, para outros, é crime de estupro. Os que defendem o fato como ato obsceno e importunação ofensiva ao pudor se baseiam na literalidade da lei e entendem que não há violência ou grave ameaça à vítima.

Pois bem, vamos nos imaginar na situação: você está sentada num ônibus ou num metrô, indo ou voltando do trabalho, e um homem para na sua frente, começa a se masturbar em público, e, repentinamente, sem que você tenha possibilidade de reagir, de se defender, ejacula no seu pescoço. Você acredita que isso não tem violência? Acredita que esse fato não está revestido de ameaça à sua dignidade, à sua saúde e aos seus direitos humanos? Nesses casos, a justiça não pode ser cega. O crime não é de menor potencial ofensivo: ele ofende a todas nós.

Há, também, a discussão sobre a falta de um crime especifico para esse tipo de conduta na nossa legislação. Isso é fato e eu concordo. Mas enquanto essa lei não chega, não podemos entender que o fato se reveste de pequeno potencial ofensivo, pois seria muito “injusto” e “pesado” enquadra-lo como estupro. Para um, a pena mínima é de 3 meses, para outro, a pena mínima é de 6 anos, ou, se considerado estupro de vulnerável, de 8 anos.

Mas não se pode admitir que a espera de um tipo penal próprio, tal fato seja enquadrado no crime menos grave. Estamos garantindo o direito do agressor, em prejuízo dos direitos das mulheres.

E em relação a possibilidade de o agressor cometer o fato e, horas depois de ser preso, sair pela porta da frente, onde eu, você e todas as mulheres passamos todos os dias? Como aceitar? Inclusive sem se ater aos antecedentes criminais desse homem, que já tinha passagens por crimes da mesma natureza.

Há 15 dias, pela mesma porta da frente, saiu o autor de um dos feminicídios que citei acima após ter sido preso em flagrante por dar um tiro na cara da sua ex-companheira, na frente da sua filha de 14 anos. Mas quem iria sustentar e cuidar das crianças, já que a mãe morreu? Houve recurso, o Tribunal de Justiça reformou a decisão, ele foi preso novamente, mas poderíamos não ter tido essa sorte.

Se esses fatos não colocam em risco a sociedade,  não colocam em risco as mulheres, que, diga-se de passagem, estão sendo esquecidas na sua dignidade ena sua honra, não temos mais nada a fazer, senão um apagão.

Afinal, numa verdadeira onda de retrocessos e ameaças ao estado democrático de direitos,  a impressão é de que só os homens têm honra. Ontem em uma audiência, ouvi de um advogado que a mulher apanhou porque o homem, seu cliente, estava defendendo a sua honra:  “Ele é homem, ele foi traído”.

E as mulheres, onde ficam nessa história? Uma vez ouvi de uma militante feminista que a dor da violência contra a mulher  aumenta quando caminha de mãos dadas com a injustiça. Mas também ouvi da mãe de uma vítima de estupro coletivo que era a justiça que iria devolver a dignidade para a sua filha e que ela iria lutar por isso. E lutou. E a justiça foi feita.

Precisamos de leis, de tipos penais próprios? Sim, precisamos. Mas antes de tudo precisamos que os aplicadores da lei estejam preparados para aplicá-las: noções de gênero, conhecimento sobre a Lei Maria da Penha e direitos das mulheres devem ser exigidas nos concursos públicos, além da capacitação periódica nesses temas.

O que nos resta? Pedir para que a justiça acenda as luzes, defenda nossos direitos e tire a venda dos olhos, pois merecemos respeito, nós temos dignidade. E se ela nos foi roubada, por favor, nos devolva, pois o que a justiça não vê, as mulheres sentem.

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