(CartaCapital, 29/04/2015) Mesmo após ter sido assassinada, dançarina de funk foi condenada pela opinião pública por seguir a profissão que escolheu
Cícera Alves de Sena tornou-se parte das estatísticas que comprovam a necessidade de existir uma lei como a do Feminicídio: foi assassinada por seu companheiro ao ter a cabeça batida diversas vezes no chão. Depois de morta, levou um tiro, tudo porque desconfiou de uma ligação recebida pelo noivo em seu celular.
O feminicídio foi tido como corriqueiro inclusive pela mídia, que ajudou a disseminar o estigma envolto no tipo de trabalho exercido pela vítima. Cícera, mais conhecida como Amanda Bueno, era uma dançarina de funk que participou do grupo Gaiola das Popozudas, do qual fazia parte também Valesca Popozuda.
As manchetes traziam os dizeres: “Dançarina de funk é morta pelo noivo”, ou “Dançarina de funk é assassinada”. A humanidade de Cícera/Amanda foi-lhe retirada à força devido à sua profissão. Apesar de parecer surpreendente aos ouvidos de alguns, ser dançarina é um trabalho tão digno quanto qualquer outro. O problema é que Amanda dançava funk, um estilo musical ainda visto com preconceito por parte da população brasileira, principalmente por ser associado à cultura negra e periférica.
Temos aqui um combo: além de ser mulher, ela subvertia os estereótipos de moralidade impostos. Dentro de uma sociedades como a brasileira, isso significa que há justificativa para qualquer tipo de violência contra ela, já que Amanda não fazia parte do seleto grupo das “mulheres que se dão ao respeito”.
Reportagens publicadas sobre o caso reduziram Amanda à sua profissão, como se o fato de ela já ter dançado funk fosse relevante às motivações de seu assassinato. Isso deu margem para que ocorresse uma onda de ódio propagada pelas redes sociais, culpando-a por ter ficado com um homem violento ou dizendo que ela mereceu por ser “vulgar”.
Nesse caso, emergem o elitismo e o eurocentrismo que permeiam a rejeição ao funk, ao rap e ao hip-hop brasileiros, três estilos musicais tratados como subculturas, das quais fazem parte os grupos mais marginalizados do país: negros/negras, pobres e travestis.
A origem dessa mentalidade se encontra numa elite que lucra com o turismo vendendo a imagem do País do funk, das bundas, das mulatas e do samba, enquanto impõem à população uma cultura oposta, branca, eurocêntrica e colonizada. A nossa origem negra/indígena é exaltada aos gringos como “exótica” ao mesmo tempo em que, para nós, ela é suja, vulgar e de mau gosto.
Em resumo: o Brasil é “modificado” para ser vendido para fora e recebe, em troca, toda a bagagem que eles trazem consigo. Isso até lembra a nossa colonização: nos exploram, humilham e desculturalizam. É dessa maneira que o funk se torna, além de marginalizado, subordinado a um suposto “bom gosto” baseado em costumes europeus.
Amanda Bueno, portanto, foi vítima não apenas do feminicídio, mas também de um País que não aceita suas raízes e, ao contrário, faz de tudo para apagá-las ou associá-las a valores morais considerados negativos.
Ela era “só” uma dançarina de funk, então estava “pedindo”. Ela era “só” uma dançarina de funk, então fez por merecer. Ela era “só” uma dançarina de funk, então não era um ser humano digno de direitos e de respeito.
Nathália Lausch
Acesse no site de origem: O machismo e o preconceito cultural mataram Amanda Bueno (CartaCapital, 29/04/2015)