(ConJur, 13/05/2015) Neste quarto artigo da série, pretendo relacionar o tema da justiça social com as ações afirmativas. Utilizarei a Teoria a Justiça de John Rawls não exatamente para defender as ações afirmativas, pois, afinal, para Rawls o tema central da justiça é a garantia dos direitos básicos e a afirmação de princípios de justiça. Por outro lado, em razão de sua elevada preocupação com a igualdade de oportunidades, não há como supor que a teoria rawlsiana se oponha à política de cotas, mas esta exerce nítido caráter complementar àquela teoria da justiça. É sobre esse ponto que peço licença para dissertar neste artigo.
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A noção de igualdade, por sua vez, é uma das causas de políticas públicas afirmativas e se confunde com o próprio conceito de justiça, esta compreendida no terreno da justiça social ou distributiva, ou ainda, da justiça econômica. Tal compreensão é a aptidão das sociedades de distribuírem os bens produzidos ao maior número possível de pessoas, ainda que estes sejam escassos, respeitadas, evidentemente, a propriedade e a liberdade dos indivíduos como direito fundamental. Essa argumentação tem a ver com as noções de justiça distributiva como emblema do Estado moderno e das políticas intervencionistas que marcaram, e ainda marcam, a ideia de bem-estar social.
Igualdade e justiça social
Inicio com o tema da igualdade para, no próximo item, relacioná-lo com a política de cotas e seu aspecto complementar de outras políticas estruturantes. Em que pese existir certa controvérsia histórica sobre o surgimento da justiça como base argumentativa para a distribuição de bens sociais, Aristóteles e Platão, na Grécia antiga, abordaram o assunto (Fleischacker, 2006, p.4). Para a filosofia grega, a justiça distributiva consistia na distribuição de determinado bem segundo o mérito do interessado e seu status político. Não fazia parte do roteiro filosófico ateniense da época assimilar que todas as pessoas tinham direito a uma vida livre da opressão e da miséria e que qualquer pessoa deveria ter os mesmos acessos aos bens da vida.
O mérito como fundamento da justiça é uma das faces da concepção do justo, pois é inegável que a recompensa deva ser dada a quem agiu para o seu alcance. Não fosse a visão aristotélica de justiça distributiva, a constituição de patrimônio não passaria de simples abstração. É que a justiça, enquanto recompensa, respalda o argumento de que o esforço individual distingue os homens por suas capacidades próprias e que isso pode determinar seus rendimentos.
Portanto, não nego neste artigo o argumento de que é justo alguém, tendo agido sob a promessa de uma recompensa, receba os frutos de sua conquista não como atributo da sorte, mas a premiação por sua capacidade. Essa proposição, entretanto, não é a única manifestação da justiça.
Em princípio, o esforço individual de um candidato a uma vaga no serviço público pode ser recompensado com a aprovação no certame e, portanto, é justo que a vaga lhe seja disponibilizada.
A lógica da justiça distributiva em Aristóteles seria aplicável se as sociedades da atualidade fossem imunes a determinadas complexidades de relações, variedades de interesses e diversidades de condições econômicas. É evidente que talvez pudesse ser aplicado o raciocínio linear e singelo de que a justiça distributiva se cinge a uma razão de mérito pessoal, se nas sociedades modernas todos tivessem os mesmos acessos à educação básica de qualidade, saúde, moradia e conhecimentos específicos na área que pretendessem concorrer em um concurso público.
Mas, na medida em que as circunstâncias mencionadas são díspares, as condições de acesso ao cargo público não poderão ser as mesmas às pessoas submetidas a tais disparidades. O presente artigo pretende expor ideias preliminares sobre a relação entre justiça distributiva e justiça em razão do mérito apenas no tocante a reserva de vagas, entretanto as provas de admissão e as exigências de desempenho no cargo devem ser as mesmas para todos.
É de se observar que as disparidades das condições socioeconômicas precedentes dos candidatos aos concursos decorre da “loteria da vida”, isto é, a raça ou o lar em que se nasce não são escolhas individuais determinadas por certas expectativas de futuro. O imponderável é que escolhe por nós, sendo o futuro determinado por condições externas ao indivíduo e por políticas coletivizadas.
Modernamente, no conceito de Fleischacker, a compreensão de justiça distributiva pode ser resumida como uma invocação do Estado “para garantir que a propriedade seja distribuída por toda a sociedade de modo que todas as pessoas possam se suprir com um certo nível de recursos materiais” (2006, p. 8). Essa compreensão moderna de justiça distributiva é conquista do final do século XVIII, período da história que carregou uma série de desenvolvimentos científicos e políticos e, exatamente sobre este último ponto, retirar as pessoas da pobreza passou a ser meta não só pensável, mas inserida nos discursos coletivos das sociedades ocidentais. Evidentemente, a menção à propriedade deve ser contextualizada como fundamento para a argumentação de que a justiça distributiva é um caminho de natureza jurídica capaz de fundamentar a opção por ações afirmativas.
Políticas de cotas são complementares às políticas públicas de base
A noção de justiça distributiva foi se ampliando mundialmente ao logo dos últimos 200 anos. Sua principal contribuição à teoria política e ao direito foi demonstrar que o Estado exerce papel fundamental na correção das desigualdades e isso, necessariamente, passa por fases anteriores à distribuição de bens sociais pelo Poder Público. Não existem dúvidas de que o fim da justiça distributiva é permitir o bem-estar coletivo como um imperativo categórico, para lembrar Kant. A justiça distributiva é instrumento de efetivação de certos valores morais construídos para impedir que experiências passadas se repitam, as quais revelaram o semblante mais atroz e atávico da humanidade. A escravidão foi uma dessas experiências que até hoje gera reflexos. A justiça distributiva, por outro lado, não é garantia de que a humanidade não retornará ao poço fundo e tenebroso da violência e da opressão do homem sobre o homem. Nem é o caso de se concluir que o mundo do presente seja um Olimpo da justiça.
Faço este introito para ganhar fôlego, a fim de argumentar, ainda que eu corra certos riscos de compreensão, que reformas ou políticas na base são indispensáveis para evitar a perpetuação de políticas de cotas protetivas das ditas “minorias”.
Trabalharei, em síntese apertada, com os principais conceitos da obra de Rawls a título de reforço argumentativo à urgência de justiça social que as cotas exigem. Uma das formas a meu ver inadequadas de se compreender a teoria da justiça de Rawls é sufragar o entendimento de que os princípios de justiça por ele defendidos teriam aplicação somente nas condições precípuas e formadoras de uma sociedade justa. Ao sustentar que educação, por exemplo, é um dos direitos básicos a serem garantidos e que, assim sendo, permitirá ao indivíduo ter a liberdade de fazer escolhas, não exclui a possibilidade de se criarem políticas ulteriores a essa fase que visem corrigir falhas nas políticas relacionadas à educação.
Citarei a principal obra de Rawls para fundamentar o argumento de que determinadas condições básicas são essenciais para a promoção da justiça social e, consequentemente, o acesso a cargos públicos depende da garantia de que os candidatos que concorrem aos mencionados cargos tenham anteriormente as mesmas ou assemelhadas oportunidades básicas. A política de cotas no serviço público visa corrigir as falhas de oferta de oportunidades a todos (brancos, negros e indígenas), ainda que o faça ulteriormente à garantia de educação disponibilizada a todos.
Para Rawls “a estrutura básica da sociedade” é o objeto principal da justiça (2008, p 8). A teoria rawlsiana de justiça parte do entendimento de que a vida em sociedade depende de amplos esforços de cooperação mútua, pois os objetivos individuais serão mais facilmente alcançados se resultarem de esforços mútuos. Nesse ponto, é necessário estabelecer princípios que possam conduzir os integrantes de determinada sociedade a uma concepção de justiça. Rawls reconhece que a trajetória de um ponto de partida original até uma concepção de justiça que assegure oportunidades a todos é marcada por tensões, pois os indivíduos que integram a sociedade não são indiferentes aos seus esforços pessoais. Isso torna compreensível o reconhecimento de que para atingir seus objetivos pessoais cada pessoa prefere uma parcela maior a uma parcela menor dos benefícios produzidos por todos. (2008, p. 5).
Os princípios de justiça expostos por Rawls são ampliações da conhecida teoria do contrato social preconizada por Locke, Rousseau e Kant. Rawls não considera que o contrato social tenha a finalidade de inaugurar determinada sociedade ou de estabelecer uma forma específica de governo, porquanto os princípios de justiça constituem o objeto do denominado contrato social.
Para se afirmar que o sistema de cotas no serviço público é medida de justiça social ou distributiva, o argumento deverá se fincar em um fundamento teórico estruturante. Assim, os princípios que dão estrutura à justiça social são descritos em dois planos: (i) um sistema extenso de liberdades fundamentais; (ii) a disposição das desigualdades sociais ou econômicas devem ser estabelecidas em benefício de todos e se vinculam a cargos e posições acessíveis a todos (Rawls, 2008, p. 73). Tais princípios se aplicam à estrutura básica da sociedade.
Em relação ao primeiro princípio, as liberdades fundamentais (de opções políticas, de expressão, de reunião, de consciência, de proteção contra a opressão psicológica etc), bem como a garantia aos direitos de propriedade e vedação à prisão arbitrária, são requisitos mínimos à convivência em níveis ideais de igualdade. Quanto ao segundo princípio, reporta-se Rawls primeiramente à distribuição de renda e riqueza, as quais não precisam ser iguais, mas devem oferecer vantagens para todos, e, simultaneamente, os cargos de autoridade e de responsabilidade devem também ser acessíveis para todos (Rawls, 2008, p. 74).
Para os fins deste artigo a base teórica consiste no segundo princípio de justiça, no ponto em que defende a primazia de igualdades e de oportunidades. Na reformulação de alguns itens de sua Teoria da Justiça, publicada no volume “Justiça como equidade”, Rawls evidencia que o primeiro princípio se refere às normas constitucionais essenciais. O segundo princípio possui conteúdo menos normativo e mais material, pois exige “igualdade equitativa de oportunidades” (Rawls, 2003, p. 67). Seja como for, em sentido estrito, a noção de igualdade equitativa conduz à argumentação de que há uma justiça distributiva capaz de engendrar meios que ofereçam oportunidades a todos, alicerçada em um princípio de diferença. Muito sinteticamente, o princípio da diferença exige que “seja qual for o nível geral de riqueza — seja ele alto ou baixo — as desigualdades existentes têm de satisfazer a condição de beneficiar os outros tanto como a nós mesmos” (Rawls, 2008: 91).
Assim, o sistema de cotas para negros no serviço público procura corrigir a falha histórica que lançou boa parte da população negra à exclusão dos bens sociais e econômicos. Os indicadores sociais e as estatísticas de ocupação de cargos na administração pública federal entre brancos, pretos e pardos, demonstrados no artigo de 29.4.2015 (Indicadores Sociais como determinantes de ações afirmativas), publicado nesta Revista Eletrônica Consultor Jurídico revelam que nesse segmento produtivo os benefícios não estão sendo compartilhados em condições de igualdade. Conforme a teoria de Rawls: “por mais que a situação de uma das pessoas melhore, do ponto de vista do princípio da diferença não há ganho algum, a não ser que a outra pessoa também ganhe” (2008: 91).
Apesar de simples, a proposição transcrita pode servir de fundamento para ideias mais amplas. A reserva de cotas para negros nos concursos públicos federais poderá reduzir o nível de desigualdade entre as populações negra e branca, pois a conquista de uma vaga por candidato branco não poderá significar vantagem sobre o candidato negro, se ambos não usufruíram das mesmas condições de igualdade em etapas anteriores de preparação para o concurso, mormente em razão de fatores externos à vontade do candidato negro. Do ponto de vista da igualdade, a vaga do candidato branco preparado em boas escolas se legitima com mais vigor quando não exclui o acesso do candidato negro que não teve as mesmas oportunidades para competir, mas se encontra nas mesmas condições como cidadão para exercer o cargo em disputa. O mesmo princípio de justiça deve ser aplicado aos demais candidatos que em razão de fatores arbitrários não puderam se preparar em igualdade de condições.
Um princípio de justiça que se paute sobre a noção de que “não há ganho algum, a não ser que a outra pessoa também ganhe” oferece critério ético em que se preferirá corrigir a injustiça histórica como prioridade, ao invés de simplesmente se proteger a igualdade formal, pois esta última escolha daria garantia de direitos somente aos que já gozam de melhores condições precedentes de acesso aos cargos públicos. Um princípio de justiça que se preocupe primeiramente com a garantia de direitos básicos para todos — como educação e saúde — rompe com o que Rawls afirma ser a “loteria natural”, em razão da qual os indivíduos que nasceram em lares bem aquinhoados terão oportunidades mais amplas de obtenção dos melhores postos econômicos e sociais (2008, p. 87). A efetividade dos direitos básicos é a construção de uma sociedade mais justa na perspectiva da equidade. Mas essa lógica, aplicável para os direitos básicos, pode ser estendida a opções éticas que visem assegurar igualdade para todos em qualquer categoria de direitos, seja a educação, a saúde ou o acesso a cargos públicos.
No próximo artigo finalizarei a série pinçando as principais políticas de ações afirmativas raciais existentes no país e que precisam ser iniciadas ou reforçadas.
Acesse no site de origem: Igualdade como causa central das ações afirmativas, por Cleucio Santos Nunes (ConJur, 13/05/2015)