(El País, 02/06/2015) “Nas competições masculinas da FIFA, só os homens podem ser selecionados para jogar. Nas competições femininas da FIFA, só as mulheres podem ser selecionadas para jogar.” Essas frases, que parecem um truísmo cacofônico, pertencem ao parágrafo IV do Regulamento para a Verificação de Sexo da organização que rege o futebol mundial. São duas pinceladas que buscam desenhar uma realidade – a da sexualidade humana – muito mais complexa, e que, entretanto, pende como a espada de Dâmocles sobre a vida das mulheres que jogam futebol. Concretamente, das jogadoras que não se encaixam no estereótipo físico de mulher esportista, a ponto das ameaçá-las de serem expulsas dos seus times e obrigadas a se submeterem a uma humilhação pública que algumas já sofreram.
No sábado, começa no Canadá a Copa do Mundo de futebol feminino, e junto com o apito inicial entrará em vigor uma norma considerada humilhante tanto por especialistas quanto pelas próprias esportistas (que, na maioria, preferem levar o assunto na brincadeira): as jogadoras precisam demonstrar à FIFA que são mulheres. E, o que é pior, a qualquer momento uma delas pode ser repentinamente submetida a uma “investigação aprofundada”, bastando para isso que uma comissão de especialistas enxergue “motivos e evidências” de que uma jogadora poderia na realidade ser homem. Segundo o próprio regulamento da FIFA, deve ser levada em conta “qualquer anomalia das características sexuais secundárias”, ou seja, atribuições físicas como seios e quadris largos nas mulheres, ou pelo corporal e musculatura nos homens. Tudo para assegurar que as jogadoras “sejam do sexo correto”.
Essa política pode facilmente levar a abusos, ao apontar mulheres que não se ajustem às normas de feminilidade e submetê-las a investigações humilhantes e estigmatizantes”, denuncia Katrina Karkazis, especialista em bioética da Universidade Stanford, nos EUA. Karkazis há muito tempo critica os critérios anticientíficos que organismos como o Comitê Olímpico Internacional (COI) e a Associação Internacional de Atletismo (IAAF) usam para tratar como trapaceiras mulheres que, por exemplo, tenham excesso de testosterona no organismo, caso da corredora sul-africana Caster Semenya. Mas o critério da FIFA é inclusive mais irracional, segundo a especialista. “O castigo é severo. As mulheres que se negam a participar desse escrutínio humilhante serão punidas. E, o que é pior ainda, as mulheres que não se encaixarem em seu gênero serão suspensas.”
A sul-coreana Park Eun-Sun, atacante com mais de 1,80 metro de altura, passou por seu calvário pessoal em 2013, quando seis dos sete treinadores da liga feminina da Coreia do Sul defenderam um boicote a Park até que a atleta, rainha da pequena área graças ao seu porte físico, demonstrasse que não era homem. Sua equipe descreveu essa campanha como uma violação dos direitos humanos. Ela desabafou no Facebook: “Dói-me o coração e é humilhante. Passei muitas vezes por exames de gênero e disputei a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Sei que essas pessoas estão tentando me destruir… Mas me esforcei muito para chegar até aqui e não vou me dar por vencida tão facilmente”. Atualmente, ela joga numa importante equipe da Rússia e volta a disputar a Copa com a seleção do seu país, mas teme que sua aparência motive novos comentários ferinos.
Na semana passada, Doris Fitschen, gerente da Federação Alemã de Futebol, confirmou ao jornal Bild que todas as suas jogadoras haviam passado no exame de sexo. A prova: os prontuários médicos nos quais figuravam sua última consulta ginecológica. “Não só é invasivo e uma violação da privacidade como também é pouco científico”, observa Karkazis. A ciência sabe que a sexualidade das pessoas, as condições anatômicas e fisiológicas que caracterizam a cada sexo, está longe de ser esse preto no branco que a legislação da FIFA sugere. A imprensa britânica também publicou que as jogadoras inglesas confirmaram seu sexo.
“Há cada vez mais indícios sobre a grande diversidade que existe no sexo, que não é um sistema binário, longe disso, e que depende da genética, da epigenética, do desenvolvimento, do ambiente e de outras circunstâncias que podem ocorrer durante a vida de cada pessoa”, diz Victoria Ley, diretora de Saúde e Esporte do Conselho Superior de Desporto da Espanha. O problema fundamental, para ela, é que os conhecimentos científicos não estão sendo transferidos para as normas esportivas. “Não só isso: pretende-se que a biologia se adapte à legislação, o que é impossível. O lógico é que a lei se adapte à biologia”, lamenta.
À primeira vista, o problema é simples: ser homem é uma vantagem ao competir com mulheres. Em junho de 2011, depois de aprovar esse regulamento de verificação de sexo, a FIFA enviou uma circular (ver o PDF, em inglês) observando que “os hormônios androgênicos [basicamente a testosterona] têm efeitos que melhoram o rendimento e podem proporcionar uma vantagem no futebol”, sendo, em última análise, uma das provas definitivas para a FIFA, junto com exames físicos e reconhecimentos de todo tipo. Mas se trata de uma colocação que se choca com o que a ciência já nos permite saber: não há um nível de testosterona que determine que um humano seja homem ou mulher. Nem a testosterona nem outro hormônio: “Não existe um marcador biológico que sirva para determinar o sexo de uma pessoa”, diz Karkazis, taxativamente.
A nova norma foi publicada logo antes da Copa do Mundo feminina, quando três jogadoras da Guiné Equatorial foram acusadas de serem homens por causa da sua aparência, embora não fossem.
Um estudo publicado no ano passado concluía que “a definição do COI da mulher como alguém que tem um nível de testosterona normal é insustentável”. O estudo havia sido encomendado pelo próprio COI, que posteriormente, no entanto, encontrou ressalvas no trabalho. Os resultados de uma análise dos níveis hormonais de quase 700 esportistas olímpicos mostraram que 13,7% das mulheres tinham testosterona acima da faixa esperada, e 4,7% estavam diretamente na faixa masculina. Entre os atletas homens de elite, 16,5% tinham níveis de testosterona abaixo da faixa estabelecida, e 1,8% caíam ao nível das mulheres.
Victoria Ley explica que as normas esportivas precisam ser adaptadas a diferentes características biológicas e fisiológicas para estabelecer os limites em seus regulamentos, “limites que são arbitrários, pois se trata de diferenças em uma faixa de continuidade, e nunca são branco ou preto”. Foram estabelecidos limites de peso, de idade e de sexo, mas não para muitíssimos outros aspectos fisiológicos que afetam enormemente o rendimento, como a quantidade de eritrócitos, a massa muscular, a altura etc. (sempre que se trate de condições naturais). “Aceitam-se algumas vantagens se forem adquiridas pelo treinamento ou se forem inatas, embora sejam consequência de mutações genéticas pouco comuns, como a variante 577R do gene ACTN3, presente em 85% dos africanos e que oferece claras vantagens no atletismo”, assegura.
“O raciocínio sobre os níveis de testosterona levaria a descartar também todos os esportistas com mais de dois metros de altura… e adeus NBA!”, ironiza Ley. Karkazis publicou na semana passada um artigo na revista científica Science – antes da nova norma sobre o futebol feminino – dizendo que a polêmica a respeito da sexualidade das atletas é de caráter “social e ético, sobre como que entendemos e demarcamos a diversidade humana”. Acrescentava: “E isso tem consequências muito reais sobre a vida das pessoas”. São vítimas da exclusão e de punições injustas, como Semenya, as indianas Dutee Chand (cujo caso tramita na Justiça) e Santhi Soundararajan (que cogitou o suicídio), a espanhola María José Martínez Patiño (suspensa na década de oitenta em meio a uma tormenta midiática e pessoal) e a sul- coreana Park Eun-Sun.
“Em muitas ocasiões não é possível determinar o sexo de um indivíduo mediante parâmetros biológicos e, portanto, a opção mais razoável é levar em conta unicamente a identidade sexual de cada indivíduo”, afirma Ley. Karkazis concorda: “São mulheres que viveram e competiram como mulheres a vida inteira. Seus documentos legais dizem que são mulheres. Assim, por que estão exigindo-lhes a verificação de sexo?”.
Javier Salas
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