(O Globo, 24/06/2015) Considerada uma figura polêmica, Kristin Beck tem visitado eleitores para tentar garantir votos, mas sem usar a bandeira LGBT
A primeira coisa que Lawrence Shaw percebeu sobre o candidato ao Congresso que foi até a sua casa foram as medalhas — uma Purple Heart, uma Estrela de Bronze com um “V” para a valentia e uma condecoração do Serviço Comum de Comenda — colocadas em seu blazer.
— Você é aposentado militar? — perguntou Shaw.
— Sim, 20 anos, operações especiais da Marinha — disse Kristin Beck.
Ela jogou os longos cabelos loiros para trás e mostrou o pingente de prata em seu colar: uma águia segurando um tridente, âncora e pistola.
— Uau, eu não sabia que havia uma mulher nesta função. Isso é incrível — comentou Shaw, um coronel aposentado do Exército.
— Eu sou o primeiro — falou Beck. O que ela não disse foi que, no momento de seu serviço, era Christopher Beck, um homem.
Há dois anos, Beck apareceu publicamente como uma mulher, mas como ela mesma caracterizou ainda “se parecia com um cara em um vestido”. E, de qualquer maneira, ela está correndo para o Congresso — não tanto como um candidato transexual, mas como um que é transgênero.
É por isso que ela não trouxe as questões de gênero quando ela caminhou pelo bairro de classe média alta negra de Shaw, em Maryland, buscando votos contra Steny H. Hoyer, o segundo mais poderoso democrata na Casa dos Deputados. Beck, de 48 anos, dificilmente vai ganhar. Ela não tem o reconhecimento do nome ou muito dinheiro. Ela ainda não tem o apoio dos principais grupos de gays e transgêneros de advocacia. Eles têm problemas com sua tentativa de derrubar Hoyer, um aliado incondicional dos direitos LGBT. Mas o que Beck tem é uma história incrível de vida, uma plataforma ligeiramente confusa de cerca de 70 questões e uma mensagem de que o distrito está pronto para uma mudança.
— Isso é bom! Outra mulher no Congresso — que é o que eu estou falando. Dê para as mulheres! — disse a esposa de Lawrence Shaw, Yvette.
Christopher Beck nasceu em 1966 e cresceu em uma pequena fazenda no oeste da Pensilvânia, frequentou uma escola cristã. Aos 5 anos, Beck foi sorrateiramente no quarto de sua irmã para experimentar seus vestidos. Uma vez, seu pai pegou vestindo um tutu cor de rosa.
— Ele me deu um susto tão grande que demorou muito tempo para eu fazer isso de novo na frente de alguém — lembrou Beck. A candidata canalizou sua agitação interna em esportes, fugiu de casa por um breve período e terminou no Instituto Militar da Virgínia depois de finalizar o colegial.
Ele se juntou ao grupo de operações especiais da Marinha, casou-se com sua primeira esposa, Shelly, e teve dois meninos. Cada vez que retornava aos Estados Unidos, chegava em casa com raiva. Ele chegou a bater em um homem bêbado, em um bar, e teve que passar a noite na prisão. O casamento se dissolveu.
Após 20 anos lutando por seu país, Beck decidiu se aposentar e lutar por si mesma. Um ex-membro de operações especiais do Team Six saindo como uma mulher feita passou a surfar na onda da publicidade. Apareceu em horário nobre na CNN e teve um documentário de 90 minutos chamado “Lady Valor.” Ela deixou o emprego como consultora militar e passou a ganhar a vida dando palestras sobre direitos humanos.
— Eu tenho direito a um pouco de felicidade — disse Beck, que fez lobby em nome de um projeto de lei que tornaria ilegal a discriminação na contratação com base na orientação sexual ou de gênero. Ela ainda defendeu proteções LGBT nas forças armadas.
Levou tempo, mas seus pais aprenderam a ser solidários. Tem sido mais difícil para seus filhos, que ela raramente vê. No ano passado, mudou-se para o 5º Distrito de Maryland, perto da Base da Força Aérea Andrews. Em um evento social no Pentágono, Beck conheceu uma mulher, Heather Stott, uma sargento técnica ativa nas Forças de Segurança da Força Aérea. Os dois se apaixonaram e ficaram noivos.
— Eu sei que eu sou o azarão, mas eu estou correndo atrás para ganhar — enfatizou.
Beck é uma personalidade polêmica. Ela ganha a vida fazendo palestras sobre auto-aceitação, mas não quer ser vista como “candidata transgênera”. Ela sofre de transtorno de estresse pós-traumático, que se manifesta por problemas de sono e uma tendência a se repetir. Em várias ocasiões, ela pede para não ser chamada de herói, mesmo quando ninguém o fez.
Na única vez que seu site aborda a questão LGBT, ela declara que “os direitos dos homossexuais, casamento e uma série de outras questões não devem ser dirigidos por alguns homens brancos velhos em Washington”.
Ela tem uma maneira de se conectar com os eleitores, adaptando seu discurso para públicos específicos. Em um Starbucks em College Park, um professor ouviu atentamente seus argumentos para a educação universitária livre. Em um estacionamento, ela conversou com David Jackson, um veterano do Vietnã, sobre a necessidade de mais veteranos no Congresso.
— Ela tem o meu voto e não se importa sobre o seu sexo ou gênero — comentou Jackson.
Acesse o PDF: Transexual, ex-oficial das operações especiais da Marinha é candidata ao Congresso (O Globo, 24/06/2015)