(Folha de S. Paulo, 08/07/2015) Colunistas usam o pouco conhecimento e o muito espaço que possuem para chamar de ignorantes os militantes antirracismo
De 555 colunistas e blogueiros de 8 veículos de imprensa (Folha, “O Estado de S. Paulo”, “O Globo”, “Época”, “Veja”, G1, UOL, e R7), 6 são negros. Também por isso o debate sobre racismo ocorre longe da maioria da população a quem, no dia a dia, ele não afeta ou interessa.
Quando um caso é destaque, como a suspensão da peça “A Mulher do Trem”, produzida pelo grupo os Fofos Encenam e acusada de reproduzir estereótipos racistas usando “blackface” –técnica de pintar o rosto de preto–, colunistas e comentaristas usam o pouco conhecimento e o muito espaço que possuem para chamar de ignorantes os militantes antirracismo.
O “blackface” é discutido nos movimentos negros desde 1944, quando Abdias do Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro.
Aliás, situação emblemática aconteceu com ele, para quem foi escrito o personagem Ismael, médico negro de “O Anjo Negro”, de Nelson Rodrigues. Em 1948, Ismael foi encenado por um ator branco com “blackface” porque o Theatro Municipal do Rio não permitiu a um negro contracenar com uma loira.
O grupo e os defensores da peça alegam que não fazem uso do “blackface”, e sim da tradição do circo-teatro brasileiro inspirada na Commedia dell´arte.
Mas nesta há apenas máscaras negras como a do Arlequim, o que difere das maquiagens popularizadas nos shows de menestréis que surgiram nos EUA e contribuíram para a proliferação de estereótipos racistas construídos a partir da visão que brancos tinham de negros.
Comicidade, burrice, insolência, acomodação e preguiça compunham tipos como “Uncle Tom”, “Mammy”, “Jezebel” e “Jim Crow”, que batizou o nefasto sistema de leis segregacionistas. Além de shows próprios, tais personagens também invadiram shows de variedades conhecidos como Vaudeville.
O Vaudeville influenciou o circo-teatro brasileiro e a montagem de “A Mulher do Trem”. A peça original, “Le Compartiment des Dames Seules”, de Maurice Hennequin e Georges Mitchell, não faz uso de criados negros ou de “blackface”.
Segundo o diretor Fernando Neves, em comunicado, “a máscara do negro foi forjada por todos os circos e em todos eles apresenta as mesmas características (assim como a máscara da ingênua, do galã, da patroa megera etc.)”.
Já o professor Mário Bolognesi, em debate no Itaú Cultural, disse que o circo brasileiro “vem de uma tradição da comicidade popular que trabalha com personagens-tipos, o que é diferente de estereótipos. Personagens-tipos são condensações essenciais de características psíquicas […], mas também sociais”.
Ou seja, enquanto temos personagens-tipos caracterizados psicológica ou socialmente por ingenuidade, beleza, ruindade etc., temos o personagem-tipo negro; e isto é, sim, estereótipo racista.
Bolognesi cita o palhaço negro Benjamim de Oliveira para dizer que a versão teatral do circo brasileiro era abolicionista. É preciso não confundir abolicionista com antirracista. Muitos abolicionistas queriam apenas purificar a raça, impedindo a entrada de mais negros no Brasil.
Benjamim, que era escravo, fugiu com o circo Sotero aos 12 anos, para fugir novamente três anos depois, porque era espancando. Segundo ele, para “fazer jus a um prato de comida”, lavava cavalos e servia de copeiro na casa do dono do circo; situação semelhante à escravidão.
Essas e outras informações deveriam fazer parte do debate. Mas não fazem. Porque a deseducação promovida por séculos de escravidão e racismo, aliada ao placar de 549 a 6 na imprensa brasileira, cava um fosso profundo demais para preencher.
Ana Maria Gonçalves, 44, escritora, é autora de “Um Defeito de Cor” (ed. Record), vencedor do Prêmio Casa de las Américas.
Acesse o PDF: “Blackface”, o racismo no teatro, por Ana Maria Gonçalves (Folha de S. Paulo, 08/07/2015)