(O Globo, 25/07/2015) Historiadores analisam a força e o carisma da Rainha Ginga, de Angola
Brilhante estrategista militar, inimiga dos governantes portugueses, idolatrada pelo povo, temida por maridos e cristã por conveniência. Entre uma batalha e outra no século XVII, no território da atual Angola, a rainha Ginga se tornou o pesadelo dos lusitanos. Mesmo usando o comércio de escravos para viabilizar suas manobras políticas, ela é considerada uma heroína ancestral e inspiradora do Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, celebrado hoje, por sua feroz resistência ao poder europeu em terras africanas. Em Angola, o governo vem trabalhando para torná-la Patrimônio da Unesco.
Antes de se consolidar como uma dura opositora do domínio lusitano no território, Ginga Mbandi cresceu no reino de Ndongo, onde os portugueses tentavam cooptar os chefes locais seduzindo-os com presentes e ajuda militar. Logo, porém, a convivência deixou de ser harmoniosa. Os colonizadores avançaram pelo interior construindo fortes, e os líderes africanos foram obrigados a pagar tributos com escravos, que, por sua vez, podiam ser treinados como soldados ou comercializados no exterior.
A guerra, que já parecia inevitável, estourou quando um presídio foi construído próximo à Cabaça, a moradia do Ngola — o título dado ao soberano de Ngondo. Centenas de súditos foram presos, inclusive membros da família real. Derrotado, o Ngola Mbandi deixou a cidade.
— Quando o novo governador português, João Correia de Souza, assumiu o poder, encontrou Ndongo destruído, com as feiras de escravos paralisadas e as autoridades regionais insubmissas — conta Mariana Bracks, doutoranda em História Social pela USP e autora do livro “Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola” (ed. Mazza). — Os portugueses precisavam restabelecer o comércio e solicitaram uma embaixadora para negociar a paz. O Ngola nomeou sua irmã mais velha, Ginga, para este papel, porque desde pequena ela foi educada por seu pai para assuntos políticos e militares.
Ao receber Ginga, Correia de Souza quis colocá-la em seu devido lugar. Sentou-se em uma cadeira alta e pôs uma esteira no chão para a embaixadora. Autor de “O trono da rainha Jinga” (outra grafia para o nome da africana), da editora Record, Alberto Mussa revela que a tentativa do português de marcar posição foi malsucedida.
— Ginga pôs uma escrava de quatro e sentou-se sobre ela — conta. — Desde o início, quando houve uma tentativa dos colonialistas de submeter o povo à vassalagem, o que transpareceu foi sua postura de negociar de igual para igual.
Segundo o acordo de paz, Ndongo não pagaria tributos para Portugal. Ambos os reinos poderiam comercializar, mas como nações soberanas e independentes. Impressionado com a oratória da embaixadora, Correia de Souza ofereceu a ela um batizado cristão. Ginga aceitou e ganhou o nome Ana de Souza — o próprio governador foi seu padrinho. A partir daí, ela usaria a religião sempre que lhe proporcionasse algum benefício. Nunca abandonou as crenças de sua etnia, os mbundos.
Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco e autor do livro “Palmares: os escravos contra o poder colonial” (ed. Terceiro Nome), Rômulo Xavier ressalta que a adoção da nova fé foi apenas um expediente político usado por Ginga e pela classe alta de Ndongo. A tática da união entre espada e cruz já havia sido adotada pelo rei do Congo no fim do século XV, o que resultou no aumento do seu poderio naquela região.
— A conversão ao cristianismo era apenas superficial e restrita à elite política da população, que provavelmente adaptou elementos da nova religião às crenças antigas — explica o historiador. — Ginga pode ter usado diplomaticamente o cristianismo para fortalecer o tratado de Correia de Souza.
IRMÃO ENVENENADO
Os portugueses, no entanto, logo ignoraram os termos do acordo. A maior vítima dos ataques a Ndongo foi Ngola Mbandi, ainda no exílio. Em 1624, o então soberano morreu por causas misteriosas. Uma das teorias mais aceitas é que ele teria sido envenenado pela irmã, que também mandou afogar o sobrinho, herdeiro natural do trono, e se apossou das insígnias reais.
— Não se sabe ao certo quem deu o veneno ao Ngola Mbandi, mas era comum nos reinos africanos o suicídio ritual de um chefe malsucedido — avalia Mariana. — Quando Ginga assumiu o poder, o novo governador português, Fernão de Sousa, achou que ela seria muito útil para retomar o comércio e expandir o cristianismo na região. Mas, devido à instabilidade gerada pelas sucessivas guerras, muitas pessoas fugiam de suas terras e buscavam asilo junto à rainha.
Boa parte da multidão que corria até a soberana era formada por escravos que haviam recebido treinamento militar e armas de fogo para atuar na defesa dos presídios portugueses. Dessa forma, Ginga se fortalecia e os portugueses ficavam desguarnecidos. O exército da nova Ngola abrangia guerreiros de diversas etnias.
— A rainha se uniu aos grupos nômades jagas, casando-se com o seu chefe. Em seguida, conquistou o reino de Matamba e, depois, formou uma coligação com os reinos de Congo, Dembos e Cassanje — enumera Xavier. — Ginga liderava pessoalmente as suas tropas. Para impor a sua política aos reinos vizinhos, podia apelar para o seu exército, que contava com quase 80 mil arqueiros. Com ela, expandiu territorialmente o reino e aumentou seu fluxo econômico.
Todos os soberanos da África Central respeitavam e temiam a Ngola. Mesmo com as ordens portuguesas para que outros chefes de Estado lhe negassem a passagem e a capturassem, ninguém ousou contestar o poderio de Ginga.
No início da década de 1640, a soberana angariou um aliado europeu. Sediado em Recife, o holandês Maurício de Nassau precisava de mão de obra para o cultivo da cana de açúcar. Tropas nacionais, então, conquistaram o porto negreiro de Luanda, um dos maiores da África.
Ginga viu ali a oportunidade de livrar-se de inimigos históricos. Criou uma rota comercial entre seu reino e a região invadida pelos holandeses, trocando escravos resistentes ao seu comando por mercadorias europeias, principalmente armas de fogo, usadas nas batalhas contra os portugueses.
50 ‘CONCUBINOS’ NO HARÉM
Especialista em História da África, Alberto da Costa e Silva destaca como o então recém-firmado comércio transatlântico com a Holanda expunha a habilidade política de Ginga.
— Ela se recusava a devolver os escravos que fugiam dos governadores portugueses, mas capturava escravos para os holandeses — assinala Costa e Silva, autor de obras como “A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700” (ed. Nova Fronteira). — Sabia manipular os grupos com que lidava. Foi uma craque na arte de conservação do poder.
O angolano José Eduardo Agualusa, colunista do GLOBO e autor do romance “A rainha Ginga — E de como os africanos inventaram o mundo” (Foz Editora), lançado em março, pondera que a postura da Ngola combateu os portugueses, mas nunca o tráfico negreiro:
— O tempo todo ela estabeleceu alianças para defender seus interesses, e um deles era o tráfico negreiro — ressalta. — Os escravos eram o produto mais valioso da época. Ninguém defendia o fim da escravidão. Seria como advogar hoje por um mundo sem exércitos.
Em seu auge, Ginga tinha mais maridos do que alguém poderia contar. Alguns pesquisadores dizem que havia mais de 50 “concubinos” em seu harém. Costa e Silva destaca que um rei africano podia ter até mil mulheres — não se sabe se a mesma regra valeria para uma soberana. Fato é que a Ngola mandava que eles se vestissem de mulher, enquanto ela muitas vezes usava roupas masculinas, o que pode ser interpretado como uma tentativa de demonstrar a sua força.
Já no fim da vida, cansada da luta com os portugueses, apelou para os capuchinhos italianos instalados em Matamba e reafirmou sua fé cristã. Aos 74 anos, queria a paz e, com o gesto, garantiu a libertação de sua irmã, sequestrada pelos inimigos. Morreu em 1663, com mais de 80 anos, e foi sepultada seguindo os rituais cristãos.
O povo de sua etnia consagrou Ginga como a “rainha imortal”. Mais de quatro décadas depois de sentar-se sobre uma escrava, conquistando a mesma altura de um governante português durante uma série de negociações, ela morreu sem se curvar às exigências do colonizador ou conhecer o interior de um navio negreiro. A trajetória de Ginga foi relembrada durante os movimentos de libertação de Angola, que deixou de ser colônia portuguesa em 1975.
— Ela é um símbolo da resistência angolana, porque conseguiu reunir vários povos na luta contra o invasor europeu, organizando os governantes locais e mobilizando soldados entre a população — diz Mariana Bracks, da USP. — Jamais se entregou e conseguiu garantir pela guerra e pela diplomacia a sua liberdade. Foi consagrada como heroína nacional, que reuniu os povos angolanos na resistência frente a Portugal, e hoje é a principal personalidade do país.
Para Mariana, nem a prática do comércio de escravos obscurece a reputação de Ginga.
— Sua atuação política e militar, se pensada ao longo dos anos, representou um decréscimo no tráfico na região. Durante muito tempo Ginga coibiu o pagamento de tributos pelos chefes locais, assaltou as feiras e as caravanas de escravos, libertando os prisioneiros e tornando o comércio inseguro.
Xavier, por sua vez, avalia que ainda é difícil compreender o legado da Ngola:
— É um julgamento moral difícil. Ginga, ao mesmo tempo em que lutava contra os portugueses, era sua concorrente em atividades econômicas na região. Como líder militar, deveria manter a disciplina de seus comandados. Como diplomata, ao realizar acordos, precisava ser dissimulada e desconfiar dos seus permanentes adversários. Eram estratégias de sobrevivência.
Renato Grandelle
Acesse o PDF: Rainha Ginga de Angola, a líder da resistência africana (O Globo, 25/07/2015)