(Folha de S.Paulo, 28/07/2015) O tribunal de última instância do esporte mundial tornou ainda mais indistinta a demarcação entre atletas homens e mulheres, na segunda-feira, ao decidir que um fator comum na distinção entre os sexos –o nível de testosterona natural no corpo do atleta– é insuficiente para proibir que algumas mulheres concorram em provas femininas.
O Tribunal Arbitral do Esporte, sediado na Suíça, questionou a vantagem atlética dos níveis naturalmente elevados de testosterona nas mulheres e suspendeu imediatamente a prática de “regulamentação de hiperandrogenia” pela Associação Internacional de Federações de Atletismo (Aifa). O tribunal deu prazo de dois anos à organização para obter provas científicas mais persuasivas que vinculem “níveis reforçados de testosterona” a “desempenho atlético melhorado”.
O tribunal estava decidindo um caso envolvendo Dutee Chand, velocista indiana que serve como mais recente demonstração que o sexo é biologicamente parte de um espectro, e não uma definição “esse ou aquele” facilmente adaptável a assuntos como o esporte. E a decisão também complica a situação dos dirigentes que precisam definir as fronteiras entre atletas mulheres e homens em competições esportivas.
A questão frustra os órgãos diretivos e divide torcedores e atletas. Entre aqueles que depuseram em apoio das normas da Aifa estava a maratonista britânica Paula Radcliffe, que detém o recorde mundial da maratona feminina. Em seu depoimento, ela declarou que os níveis elevados de testosterona “tornam a competição desigual de maneira que supera o talento natural e a dedicação pura e simples”. Ela afirmou que outros atletas importantes compartilhavam de sua opinião.
“Resta a preocupação de que seus corpos respondam de maneiras diferentes e mais fortes ao treinamento e competição do que os de mulheres com níveis normais de testosterona, e isso torna a competição fundamentalmente desleal”, disse Radcliffe sobre as atletas hiperandrogênicas.
O tribunal reconheceu a complexidade de uma questão que para tanta gente, por tanto tempo, era considerada um assunto simples: esse atleta é homem ou mulher?
O tribunal elogiou a Aifa por agir com “conspícua diligência e boa fé” na criação e implementação de padrões, sublinhando a dificuldade de estabelecer linhas científicas de distinção entre os sexos. Mas os juízes se declararam “incapazes de concluir que atletas hiperandrogênicas se beneficiam de uma vantagem de desempenho tão significativa que torne necessário exclui-las de disputar provas nas categorias femininas”.
Se não forem apresentadas provas suficientes em prazo de dois anos, o regulamento quanto à hiperandrogenia será considerado inválido, o tribunal afirmou. A Aifa afirmou em comunicado que se reuniria com especialistas e o Comitê Olímpico Internacional (COI) a fim de determinar o curso a seguir.
“Ainda que os eventos atléticos sejam divididos em categorias distintas para homens e mulheres, o sexo não é simplesmente binário nos seres humanos”, o tribunal acrescentou. “Como foi declarado durante a audiência, ‘a natureza não é simples’. Não existe um único determinante de sexo”.
O tribunal prosseguiu afirmando que “mesmo assim, já que existem categorias diferentes de competição masculina e feminina no esporte, é necessário que a Aifa formule uma base para a divisão dos atletas nessas categorias, em benefício da classe mais ampla das atletas mulheres. A base escolhida deve ser necessária, razoável e proporcional ao objetivo legítimo que está sendo buscado”.
Chand, campeã indiana dos 100 metros rasos na categoria sub-18 e aspirante a uma medalha olímpica, apresenta hiperandrogenia e por isso foi barrada de competir contra mulheres em 2014, porque seus níveis naturais de testosterona excedem o padrão para as atletas femininas. Agora Chand e outras mulheres que apresentem condição semelhante podem participar de competições internacionais, talvez já na Olimpíada do Rio de Janeiro, no ano que vem.
“O que tive de enfrentar no ano passado não foi justo”, afirmou Chand em comunicado divulgado pelo escritório de advocacia de Toronto que a representou. “Tenho direito de correr e competir. Mas esse direito me foi subtraído. Fui humilhada por algo pelo que não é possível me culpar. Estou feliz por outras atletas não terem de enfrentar o que enfrentei, depois desse veredicto”.
O tribunal estava decidindo especificamente sobre regulamentos que se aplicam ao atletismo, mas a ampla jurisdição do Tribunal Arbitral do Esporte significa que sua decisão provavelmente venha a ser considerada como precedente para outros esportes em todo o mundo.
Este foi apenas o mais recente caso de alto perfil a desafiar as sempre contestadas fronteiras da competição leal no atletismo, nos últimos anos. O velocista africano Oscar Pistorius, por exemplo, terminou conquistando o direito de disputar a Olimpíada de Londres, em 2012, usando próteses nas pernas. Em um caso mais semelhante ao de Chand, a corredora Caster Semenya, da África do Sul, foi barrada das competições em 2009 e readmitida um ano mais tarde depois de testes para determinar seu sexo e de muita publicidade.
Duas adversárias de Semenya objetaram à sua participação no mundial de atletismo de 2009 em Berlim, onde ela conquistou o ouro nos 800 metros rasos.
Em 2011, a Aifa estabeleceu normas que requerem que as atletas tenham nível de testosterona inferior a 10 nanomoles por litro, o que representa o nível mais baixo de testosterona para um homem.
Na Olimpíada de Londres, quatro atletas, todas as quais com entre 18 e 21 anos e oriundas de regiões rurais de países em desenvolvimento, foram identificadas como portadoras de níveis elevados de testosterona natural. Todas passaram posteriormente por cirurgias para remoção de testículos internos, que produzem testosterona, bem como por procedimentos não requeridos para a retomada das competições: vaginoplastias feminizantes, terapia de substituição de estrógeno e redução no tamanho do clitóris.
Chand descartou as recomendações de que tome medicamentos de supressão de hormônios para limitar a testosterona produzida por seu corpo. Ela apelou ao Tribunal Arbitral do Esporte, questionando por que deveria ser forçada a passar por uma cirurgia se sua condição era natural e ela não estava doente.
“Quero continuar sendo quem sou e voltar a competir”, ela disse no final do ano passado.
A decisão sobre Chand forçará a Aifa a desenvolver novos métodos de divisão do espectro. O tribunal de recursos havia decidido que continua a ser inapropriado submeter atletas a verificação de sexo, exames dos órgãos genitais externos ou testes de cromossomos. O tribunal declarou que não havia contestação de que Chand é mulher, e ninguém sugeriu que seus níveis de testosterona fossem de algum modo não naturais.
“Fiquei chocada e empolgada com a decisão do tribunal”, disse Katrina Karkazis, do Centro de Biomédica Ética da Universidade Stanford, que ajudou no caso de Chand. “Não imaginei que nossa hora tivesse chegado.
Dutee fez história com sua corajosa decisão de contestar uma norma que ela sentia ser injusta para com ela e todas as atletas. É uma vitória para a igualdade das mulheres no esporte. E estou muito feliz porque ela agora pode simplesmente correr”.
John Branch, do New York Times. Tradução de Paulo Migliacci.
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