(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 06/08/2015) No processo de desenvolvimento do Dossiê Violência contra as Mulheres, a Agência Patrícia Galvão conversou com a advogada Ticiane Vitória Figueiredo sobre a cobertura dos temas de interesse de lésbicas, bissexuais ou trans. Especialista em Direito Civil pela Universidade Mackenzie, Ticiane falou sobre a relação entre os estereótipos sociais que definem os comportamentos e vivências esperados de mulheres e homens e a violência contra essas mulheres. A advogada fala também dos cuidados que a imprensa e especialmente os profissionais de comunicação precisam ter para não infringirem direitos humanos, como nos casos da violação do direito de personalidade e da exposição desnecessária do nome de registro civil.
Confira abaixo a entrevista da integrante da União de Mulheres do Município de São Paulo, onde também coordena o projeto Promotoras Legais Populares (PLPs).
Como os marcadores de violência de gênero e raça se relacionam nas agressões às mulheres lésbicas e bis?
O machismo, o racismo, a lesbofobia, a bifobia e outras formas discriminatórias interagem diretamente entre si produzindo e reproduzindo relações de poder que ditam qual é o papel da mulher na sociedade patriarcal e capitalista. E quando uma mulher desafia o papel que lhe é imposto – como é o caso das lésbicas e bis, ao transgredirem essa heteronorma – ela acaba sofrendo uma violência meio “diluída”, que vem de diversas frentes e visa dominar e readequar essa mulher ao papel exteriormente imposto, ou até destruí-la psicologicamente ou fisicamente, levando-a muitas vezes à morte.
O que eu chamo de violência “diluída” são essas divisões. O racista, por exemplo, não se conforma em não ver naquela lésbica a ideia da mulata hipersexualizada que a sociedade vendeu a ele. O machista e lesbofóbico não se conforma em não ver na lésbica a mulher que será submissa a ele sexual e socialmente. Penso que, por essa situação, o feminismo vem migrando cada vez mais para o que denomina-se feminismo interseccional, entendendo que esses marcadores se interseccionam e geram diferentes formas de opressão. Ou seja, não dá para falarmos de um marcador isoladamente.
E sobre as especificidades da violência em relação à mulher trans?
O maior problema em relação à população trans é a patologização da identidade, que nada mais é que uma ferramenta de opressão baseada e fundamentada na estreita visão binária, que só aceita e percebe duas categorias biologizadas do masculino e do feminino, negando toda e qualquer possibilidade de expressão de gênero que não seja entendida como aquilo que essas pessoas costumam chamar de “natural”. E a violência contra as pessoas trans também se exterioriza porque a gente não tem o entendimento da diferença entre sexo e gênero. É por isso que ocorre a discriminação.
A professora trans Jaqueline Gomes de Jesus costuma resumir assim: o sexo é biológico e o gênero é social. É lógico que a conceituação é muito mais complexa, mas com esse resumo a gente consegue entender que uma pessoa transexual se identifica com um gênero que não condiz diretamente com o sexo biológico com o qual ela nasceu. Ou seja, uma mulher trans, transexual ou travesti, possui um gênero feminino, no entanto não nasceu com a genitália feminina. Mas isso não a faz menos mulher. Costumamos explicar que um homem que perde o pênis em um acidente ou por um câncer não passa a ser consequentemente mulher, assim como a mulher que passa por uma mastectomia não passa a ser homem. Ou seja, a identidade de gênero não é consequência da falta daquele órgão, está muito além disso.
A violência contra as pessoas trans também piora quando entramos no âmbito da orientação sexual. Se as pessoas já têm dificuldade de lidar com as questões de sexo e gênero, quando se fala em orientação sexual, por esse desconhecimento ou diretamente pela discriminação propriamente dita, elas excluem as pessoas trans. Porque uma mulher transexual pode ser bissexual, lésbica ou hétero. Então, quando a sociedade vê as normas sociais sendo quebradas, costuma exteriorizar a violência contra as pessoas trans da pior forma, com muito agressividade.
E os homens que se relacionam com mulheres trans costumam esconder essa relação, e quando há um risco de que essa relação seja exteriorizada na sociedade eles matam as mulheres. Como essa violência é invisibilizada, muitas vezes nem vai gerar uma ocorrência policial para se procurar saber o que aconteceu com aquela mulher. É mais uma mulher trans assassinada porque “provavelmente deu motivo para o que aconteceu a ela”.
Há semelhanças e especificidades no caso das violências sexual e doméstica cometidas contra mulheres lésbicas, bis e trans?
No que diz respeito à violência doméstica, vejo semelhanças quando se fala na forma como ela é perpetrada contra essas mulheres, comumente pelo parceiro ou parceira. No entanto, no caso das mulheres trans, bis e lésbicas, há uma segunda forma de violência doméstica, que é quando a lesbofobia, bifobia ou transfobia é impetrada no âmbito da família ou por alguém com quem essa mulher tem um vínculo de afeto. Esses três tipos de fobias podem ser configurados como violência doméstica especificamente quando falamos destas mulheres. E a gente tem que recorrer a esse recorte porque é uma forma de dar visibilidade ao que acontece especificamente com elas, e também um meio de elas saberem que estão resguardadas pela Lei Maria da Penha. Basta que o advogado ou advogada saiba conceituar isso na hora de pedir a tutela.
No tocante à violência sexual não relacionada com a violência doméstica – o que também existe -, é muito alarmante a questão do “estupro corretivo”, que é uma forma de tentar apagar a identidade lésbica da mulher. O agressor tem uma convicção de que vai fazer a lésbica “gostar de homem”, vai mudar a orientação sexual dela através da violência sexual. Essa é uma problemática específica das lésbicas. É específica porque, como a bi já se relaciona com mulheres e homens, conceitualmente não chamamos de corretivo o estupro contra ela. Mas também é uma preocupação muito grande para as trans, principalmente as que se prostituem.
Hoje a internet vem sendo usada como uma arma contra essas mulheres, com comunidades defendendo esse tipo de crime.
É a propagação do discurso de ódio. A internet que usamos para difundir informações, quebrar alguns paradigmas e romper com preconceitos também é usada para estigmatizar. Tornou-se um espaço do assédio às mulheres, de perseguição a feministas, lésbicas e trans.
E quais são os principais caminhos que poderiam ser buscados pelas vítimas para ter acesso à Justiça?
Em primeiro lugar, é preciso olhar do ponto de vista das campanhas. Fala-se muito em tolerância à população LGBTTI [lésbicas, gays, bissexuais, trans, travestis e intersexuais], e tolerância diz respeito àquilo que é suportável. Mas e quando a pessoa não suporta? Respeito exige algo mais sólido e concreto, que é entender e aceitar a outra pessoa. E temos que nos esforçar para garantir a todos e todas o pleno gozo dos direitos humanos. A ironia é que, quando falamos de direitos humanos, estamos falando dos direitos mais básicos de uma pessoa. Então, se ainda temos que discutir o resguardo dos direitos humanos de uma pessoa é porque o cenário está muito difícil.
Com relação ao que as mulheres podem fazer, aconselho sempre que ela procure apoio em coletivos feministas, porque atualmente temos sofrido muita violência institucional: nas delegacias de defesa da mulher, na Defensoria Pública, nos serviços de saúde. Então, quando essa mulher chega a esses lugares, que em tese deveriam ser de apoio e nos quais ela não encontra esse apoio, a mulher deixa de ir atrás de seus direitos, se resguardar e pode acabar sendo assassinada.
Ou uma mulher trans, quando vai a uma delegacia e o delegado ou delegada, ou o atendente que está lá, não entende que uma mulher trans é uma mulher como qualquer outra. Então, é preciso haver um treinamento especializado para esses agentes. Mas sabemos das diversas dificuldades que impedem que a Lei Maria da Penha seja aplicada de fato porque as ferramentas do Estado são machistas e reproduzem a violência, a mulher é revitimizada quando chega ali. Então ela tem que associar a busca por direitos com o apoio dos grupos organizados, que vão dar o apoio psicológico.
E como a mídia pode contribuir para não reproduzir essa violência?
A mídia tem um papel fundamental nesse processo. Quando a mídia menciona uma mulher travesti como “o” travesti, ou coloca que é um homem que virou mulher, ela estigmatiza a mulher trans. E pior que isso é quando a mídia invisibiliza violências vivenciadas pelas lésbicas, trans e travestis. Quantas mulheres trans são assassinadas por dia? Quantas são agredidas e violentadas apenas por serem mulheres trans? Quantas lésbicas são vítimas de estupros corretivos no país? E quando a gente vê as notícias, principalmente de trans, é um jornalismo muito sensacionalista, colocam as fotos das vítimas sem tratamento, infringindo direitos de personalidade.
Além disso, é preciso também que as secretarias de segurança pública ou ONGs produzam estatísticas, porque, infelizmente, sem estatísticas não há visibilidade. Fiz um curso na Escola Paulista de Magistratura e a ONU Mulheres falou sobre estupros, mas questionei e não tinham estatísticas sobre estupros corretivos e sobre a violência contra mulheres trans. Então, essa violência “simplesmente não existe”, é como se só houvesse violência contra héteros. Então, o jornalismo tem que ser investigativo, cumprir sua função social.
E pensando no profissional jornalista, quais seriam os principais cuidados que você sugeriria ao fazer uma matéria sobre mulheres lésbicas, bis ou trans ou ao entrevistar essas mulheres?
O primeiro ponto é tentar entender o tema, não só ler um artigo que diga o que é trans, pois há muito material estigmatizando e dizendo que mulher trans não é mulher de fato. O segundo ponto é a questão da representatividade. Então, se quer falar sobre transexualidade, pode-se falar com especialistas do direito e da saúde, mas é preciso ouvir uma mulher trans. No caso das lésbicas e bis, é fundamental ouvir essas mulheres.
Muitas vezes a imprensa quer alguém da academia. Então, se quer uma doutora trans, ouça a Jaqueline Gomes de Jesus, que é doutora em Psicologia e falará muito bem sobre o tema. Quer ouvir uma ativista trans? Daniela Andrade. Conheça os Princípios de Yogyakarta, que não têm força vinculante, mas são um tratado internacional que conceitua orientação sexual e identidade de gênero de uma forma tão humanizada que duvido que algum jornalista que o leia de forma crítica continuará chamando uma travesti de “o” travesti. Outra coisa é não aceitar a mulher trans só nos casos em que ela expressa todos os signos da feminilidade extrema, ou pegar casos específicos e transformar em um parâmetro para todos, sem levar em conta as histórias e a estrutura social.
E nos casos em que a imprensa comete violências, como é o caso das imagens que você citou, isso pode ser qualificado como vilipêndio de cadáver?
Sim. Isso acontece com a divulgação de imagens sem tratamento, mostrando o rosto da pessoa, o que está machucado no seu corpo. O jornalista precisa saber que nessa situação violou o direito de personalidade da pessoa. E muitas vezes nem houve autorização para veicular aquela imagem, o que pode ser cobrado como enriquecimento ilícito em razão dos acessos que o veículo teve com aquela imagem.
Ainda na questão do direito de personalidade, muitas vezes só é reportado que ela foi assassinada, é só isso que eu, como leitora, preciso saber dela? Ela não é uma pessoa? É só um número? Mais uma trans assassinada? Sem falar na questão de expor o nome do registro civil, em que também se comete um ilícito civil, porque provavelmente aquela mulher trans não queria que lhe citassem pelo nome registral. E já existem várias normas que vinculam a responsabilidade de respeito ao nome social. E ninguém vê problema em chamar a Xuxa de Xuxa, que não é o nome de registro dela. Então por que vemos problema em chamar uma trans ou travesti de Sofia?
Contato da entrevistada:
Ticiane Vitória Figueiredo – feminista e advogada especialista em Direito Civil.
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