(Época, 24/07/2015) A demógrafa identifica um novo comportamento nas mulheres acima dos 60 anos. Elas dançam, viajam, fazem ginástica – e algumas iniciam relacionamentos homossexuais
A população brasileira vem envelhecendo e, entre os que ultrapassam os 60 anos, as mulheres são maioria. A demógrafa Elza Berquó, de 83 anos, uma das fundadoras do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), é uma estudiosa desse contingente da população. Em um de seus estudos, a pirâmide da solidão, ela mostra que existem muitas mulheres sem parceiros na faixa acima dos 60 anos, e atribui isso à regra cultural segundo a qual as mulheres se relacionam principalmente com homens mais velhos. Nesta entrevista, ela diz que nessa faixa etária existem também muitas mulheres homossexuais, como as personagens de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg na novela Babilônia.
ÉPOCA – Mulheres bissexuais ou lésbicas, que esconderam isso durante a vida toda, podem assumir relacionamentos homossexuais com mais facilidade na velhice?
Elza Berquó – Elas podem. Mas não precisa ser uma pessoa que não tinha saído do armário. Essa mulher pode ter sido casada, tido filhos. Então, encontra outra e tem alguma química entre elas. E aí pronto! A velhice não é um momento em que permitiu a elas sair do armário. Foi o momento em que elas reconheceram que podiam. A outra mulher não está esperando que você seja uma beldade, porque a velhice é perversa mesmo com relação ao físico. Não tem como. Então você tem de estar bem com você e com o mundo, produzindo sua vida e fazendo coisas de que você gosta.
ÉPOCA – O que a senhora achou do beijo gay protagonizado pelas atrizes Nathalia Timberg e Fernanda Montenegro na novelaBabilônia, da TV Globo?
Elza – Essas duas estão dentro daquele perfil que eu falei. Acho que são atrizes muito valentes. Tiveram a coragem de ser personagens dessa cena. Aquilo que vai na televisão é recolhido daquilo que está aparecendo na sociedade, e vice-versa. Então, já deve haver situações, em número tal, em que mulheres idosas estão vivendo juntas e se amando. Fiz um estudo com a Universidade do Texas sobre uma nova novela da Globo em que ia surgir um novo tipo de homem – um que não é machista, não é gay e não mata a mulher quando ela o trai. Chamava-se O rei do gado (1996). Um nome simbólico porque gado tem chifres, não é? O personagem de Antonio Fagundes era um novo homem que estava surgindo na sociedade. Era um homem com uma sensibilidade e compreensão que não precisa matar uma mulher por adultério. Meu segundo marido era exatamente esse tipo de homem sensível. Agora, acho que está surgindo um novo tipo de mulher idosa na sociedade. As coisas estão acontecendo, e a novela é feita para você se reconhecer lá, para você não se sentir a última perdida no mundo. Então isso valida muitas vidas. Esse é o papel da televisão.
ÉPOCA – Essa cena sofreu muitas críticas negativas. O que a senhora achou da reação das pessoas?
Elza – Muitas pessoas viram lá o que não tiveram coragem de fazer e têm medo de mostrar-se a si mesmas. E as que veem aquilo com naturalidade ainda são uma minoria. Mas que já está acontecendo, por isso foi para a novela. Ninguém inventa um caminho na novela. Ela tem de cobrir o que está acontecendo na sociedade e dar alguns passos para ver se a sociedade quer aquilo ou não.
ÉPOCA – Há especialistas que dizem que as pessoas nascem gays. É possível que as pessoas se tornem homossexuais na terceira idade?
Elza – Não acredito que alguém nasça gay. As pessoas nascem com seus cromossomos XX e XY. Agora, o que você pode ter é um ambiente. A relação com a mãe é um dos elementos condutores de comportamentos de filhos que se manifestam como homossexuais. Isso vai aparecendo ao longo da vida. O ambiente, o contexto familiar, as carências. Ninguém nasce assim. Ninguém nunca comprovou que o gênero é definido ao nascer. O sexo sim.
ÉPOCA – Esse argumento de que o meio influencia a orientação sexual da pessoa serve para justificar tentativas de evitar que crianças convivam com gays, por exemplo.
Elza – Eu digo que o ambiente familiar tem uma influência. Principalmente da mãe, porque o menino precisa se identificar ao pai, e não à mãe. Às vezes a mãe não solta esse filho dela, como se ele ainda estivesse dentro dela. Isso tem muito a ver. Agora, ver casais homossexuais na televisão não muda o gênero de ninguém. Só se for alguém que ainda não teve coragem de se assumir.
ÉPOCA – Se o ambiente familiar for tão importante para a formação da pessoa, a senhora acredita que uma criança adotada por casal gay teria uma chance maior de se tornar homossexual também?
Elza – O ambiente familiar é a criação da mãe! Eu acho uma maravilha que um casal gay adote. Essa criança deve saber desde logo que ela tem duas mães ou dois pais e pronto. Porque todo mundo esconde que a criança é adotada, e em todos os casos tem de dizer depois. Eu não conheço nenhum estudo que mostre que crianças adotadas por casais gays, de mulheres ou de homens, têm maior chance de se tornar gays também.
ÉPOCA – Em geral, as mulheres vivem mais do que os homens. Essa é uma das razões da solidão feminina na velhice?
Elza – Quando produzi a pirâmide da solidão, mostrei que, pela regra cultural, a mulher se casa com um homem na mesma idade ou mais velho. Se você pegar um homem de 30 a 35 anos, ele pode escolher as mulheres na faixa dele ou abaixo. Em alguns casos, até estamos convivendo com gente que mora, vive ou casa com homens dez anos mais jovens – e aí há moedas de troca, como a mulher ter mais dinheiro do que ele. São trocas até legítimas. Mas sempre haverá esse desequilíbrio. Isso porque a mulher vai escolher ou ser escolhida por homens mais velhos, que são poucos. E os homens escolhem as mais jovens do que eles, que são muitas. Há um superavit de mulheres. Mas essas mulheres parecem estar se sentindo muito bem. Elas vão para a ginástica, para a dança, viajam, tiram férias, vão num cruzeiro e vão indo…
ÉPOCA – Por que, depois dos 60 anos, as mulheres parecem não ter mais direito ao sexo?
Elza – Direito essas mulheres têm, resta saber se há gente disponível. Pelo que nós estamos vendo, não há tanto. Acontece que, no sexo, você pode se satisfazer de várias maneiras. Pode ter companhias amigáveis sem sexo. Eu tive dois casamentos. De um eu me separei e do outro enviuvei, há sete anos, e, realmente, a falta que você sente é de um companheiro, o resto você sublima de outra maneira. O companheiro no cotidiano e na forma de ver o mundo, isso faz muita falta. Existe gente que consegue resolver e arruma outro, não é? Depende de cada um. Eu acho que não há limite para nada. Se está com alguma necessidade sexual, pode se arrumar de alguma forma. Agora saiu uma droga para a mulher que seria uma espécie de Viagra feminino, pois a libido da mulher pode cair. Vejo o futuro muito promissor para todas as idades, para o sexo e tudo mais.
ÉPOCA – A cultura brasileira valoriza bastante o corpo saudável e bonito. Como é possível uma mulher envelhecer bem nesse ambiente?
Elza – Valoriza, e muito. Eu acho que esse tipo de comportamento não vai mudar. Se você olhar para o tapete vermelho, as mulheres estão cada vez mais deslumbrantes e, se não o são, são fabricadas para ser. Então é uma concorrência dificílima. Quando trabalhei com a pirâmide da solidão, cheguei a dizer que seria interessante para as mulheres bem mais velhas poder viver com outras. Isso porque o desgaste físico é das duas, então tudo bem. Agora, com o homem não. O homem jamais toleraria esse desgaste, a menos que a mulher tenha envelhecido com ele. O homem não sente libido nenhuma por uma mulher idosa. Mas conheço vários casos de mulheres solucionando isso numa relação homossexual. Isso não é inviável.
Graziele Oliveira
Acesse no site de origem: Elza Berquó: “O sexo é um direito das mulheres na velhice” (Época, 24/07/2015)