(O Globo, 10/10/2015) O Estatuto da Família é aberrante e contraria a Constituição e decisões do STF. Não tem qualquer futuro no campo jurídico
O Congresso Nacional não se cansa de trazer consternação aos brasileiros. Como se não bastasse a brutal perda de credibilidade que vem sofrendo por conta de delitos contra o patrimônio público atribuídos aos seus membros mais graduados, como se não bastasse o grotesco espetáculo de cambalacho em que se transformou a pretensa reforma ministerial e que fez a população enrubescer de vergonha e humilhação, ainda se permite, aproveitando a incerteza em que o país está mergulhado, dar guarida a uma onda obscurantista cuja última façanha veio da lavra de um obscuro deputado evangélico. Este se arrogou a prerrogativa, com mais um punhado de deputados, de definir o que é a família brasileira.
Famílias, sabemos todos, são realidades tão complexas e multifacetadas quanto é complexo o mundo dos afetos, ganham formas diversas segundo as circunstâncias e momentos de uma história de vida. Ora, para os senhores deputados, é tudo muito simples: um homem, uma mulher, um casamento e os filhos desse matrimônio.
O presidente da Câmara apressou-se em fazer avançar a votação dessa aberração a que se deu o nome pomposo de Estatuto da Família, aprovado, a toque de caixa, por uma comissão especial do Congresso. O Estatuto da Família é aberrante, sim, contraria a Constituição e decisões do Supremo Tribunal Federal. Não tem qualquer futuro no campo jurídico, mas deve ser levado a sério como sintoma de uma investida insidiosa e perigosa do que há de mais atrasado na sociedade brasileira. Como tal, é alarmante e não deve passar despercebido. Traz de volta o cacoete autoritário de, em obediência a preceitos religiosos, querer invadir e controlar a intimidade e a liberdade dos indivíduos.
Impor um padrão único de família não é uma questão de opinião. O deputado que não reconhece as famílias homoafetivas como tal quer privar quem as vive dos direitos que teriam face ao ordenamento jurídico, e que a Justiça, em boa hora, já garantiu. Quem escolhe esse tipo de família não está privando ninguém de nada. Quem a exclui do campo dos direitos está, sim, negando a liberdade do outro, submetendo os direitos universais assegurados pelo Estado democrático à condenação do que alguns consideram um pecado.
É o autoritarismo fundamentalista que impede de reconhecer que as famílias não são mais e nunca mais serão como eram até meados do século passado. Hoje, na esfera afetiva, quem comanda é a liberdade de cada um.
Sempre que igrejas ou o Estado decidem se imiscuir na intimidade e na liberdade dos indivíduos para regulá-la, logo descobrem que a pretensão é temerária porque inócua. É ilusório acreditar que políticos retrógrados possam moldar a sociedade a golpes de canetadas. A sociedade seguirá soberana, moldando-se a si mesma. O que já deveriam ter aprendido quando a união civil homoafetiva entrou no campo dos direitos assegurados por uma sociedade democrática como uma evidência.
Temos vivido nos últimos anos, no Brasil, no reino da mentira e do faz de conta. Heróis que se revelaram bandidos, homens probos que se revelaram ladrões, empresas poderosas que desabam roídas pelo cupim da corrupção. Um país supostamente rico e próspero, que acorda pobre e endividado, o colapso escondido em contabilidades fajutas. Essa convivência com a mentira só tem nos trazido desesperança e medo do futuro. A aposta da onda obscurantista é acenar com o passado supostamente seguro quando o futuro está embaçado, é imprevisível e, por isso mesmo, ameaçador. Mas estão subestimando a sociedade brasileira.
Enquanto políticos profissionais se alimentam e tentam nos alimentar com mentiras, impõem uma politica carcomida, uma sociedade dinâmica, em sintonia com o mundo contemporâneo continua a produzir-se a si mesma e abre caminho às liberdades pelo seu simples viver, afirmando a sua verdade.
O mais surpreendente fenômeno brasileiro é essa ruptura entre o mundo político que apodrece e uma sociedade viva que floresce.
Vai ser cada vez mais difícil o diálogo entre essa sociedade que quer a liberdade de escolha em todos os atos fundamentais da vida privada, a maternidade escolhida, o amor e a sexualidade também, o direito de viver e morrer com dignidade e os mentirosos que acenam com um Brasil que não existe.
O Brasil não é feito só de corrupção e atraso. É feito por gente que se reinventa a cada dia, afirmando a sua liberdade e lutando pela sua felicidade. Vivendo o presente com coragem vão construindo o futuro. Os outros agonizam, resistem a morrer mas seu prazo de validade está se esgotando.
Acesse o PDF: Rosiska Darcy escreve sobre a inconstitucionalidade do Estatuto da Família (O Globo, 10/10/2015)