(Revista Samuel, 17/10/2015) Para Alex André Vargem, africanos e haitianos são tratados de forma diferente em relação aos imigrantes de outras nacionalidades que chegam ao Brasil; mito de país acolhedor impede autocrítica, avalia
A ideia de que o brasileiro é acolhedor e recebe bem todos os imigrantes não corresponde à realidade no caso de haitianos e africanos, vítimas de racismo em território brasileiro. É o que afirma o sociólogo Alex André Vargem, 35 anos, membro do IDDAB (Instituto do Desenvolvimento da Diáspora Africana no Brasil). Para Vargem, em seus países de origem esses imigrantes enfrentam questões étnicas diferentes das surgidas pelo “racismo à brasileira”, e é aqui que conhecem experiências concretas de discriminação. “Acredito que ainda haja resistência de fazer uma autocrítica, e por isso a sociedade se apega àquela imagem de que acolhemos bem todos”, diz.
O sociólogo enumera alguns dos casos de violência que vem coletando ao longo de seus onze anos de atuação na área:
• Em 2007, três apartamentos onde viviam estudantes africanos no campus da UnB (Universidade de Brasília) tiveram as portas queimadas – pichações racistas, aliás, têm aparecido nas dependências de várias universidades no país;
• Em 2011, Toni Bernardo da Silva, 27 anos, estudante da Guiné-Bissau em intercâmbio na UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso), foi espancado até a morte por um empresário e dois policiais militares numa pizzaria de Cuiabá;
• Em março de 2012, 575 africanos e haitianos foram detidos e levados em ônibus para delegacias numa megaoperação policial no Centro de São Paulo;
• Em maio de 2012, a estudante angolana Zulmira de Souza Borges Cardoso, 26 anos, foi assassinada a tiros após discussão entre brasileiros e um grupo de angolanos que confraternizava num bar do bairro do Brás, em São Paulo;
• Em agosto de 2015, seis haitianos foram baleados em dois ataques diferentes na Baixada do Glicério, no centro de São Paulo. De acordo com testemunhas, a pessoa que atirou antes gritou: “haitianos, vocês roubam nossos empregos!”.
“Quem está nesse meio sabe que não ações isoladas: são violências que se repetem a todo instante”, diz Vargem e conclui: é uma “violência que talvez a pessoa não manifeste contra corpos de negros brasileiros, mas manifestar contra corpos de africanos e haitianos”.
Graduado pela PUC de São Paulo e com formação em Direito Internacional dos Refugiados pelo International Institute of Humanitarian Law (Itália), Vargem reconhece que acaba sendo “o chato” nos debates sobre imigração por levantar esses e outros casos e dizer que, mesmo com a criação de novas leis e instâncias nos órgãos públicos, ainda é preciso esperar para ver se essas medidas trarão resultados.
O ceticismo se baseia também na falta de dados concretos sobre o número de imigrantes que vivem no Brasil. Um exemplo: é possível saber que há cerca de seis mil estudantes africanos em programas de graduação e pós-graduação nas universidades públicas brasileiras por conta de convênios bilaterais. Porém, não se sabe quantos estão nas universidades privadas. Sem conhecer os números, não há como formular políticas públicas eficientes, considera.
Alex Vargem concedeu a entrevista a seguir num café no Shopping Light, no Centro de São Paulo. Durante a conversa, era possível observar a passagem de muitos imigrantes – entre eles haitianos e africanos – tratando de questões burocráticas nos postos da Polícia Federal e da Receita Federal abrigados no prédio, onde também existem casas de câmbio e agências de remessa de dinheiro para o exterior. Na entrevista, lamenta a existência de situações como o chamado Conector do Aeroporto Internacional de Guarulhos (“um limbo jurídico”, define) e a falta de contato entre as organizações da imigração africana recente e o movimento negro brasileiro.
Revista Samuel: Você diz que os casos de xenofobia e agressões aos africanos e haitianos, como a que aconteceu em São Paulo em agosto, não são isolados, ao contrário do que defendem algumas vozes. São situações que se repetem?
Alex André Vargem: Historicamente sempre se partiu do pressuposto de que o brasileiro é acolhedor e trata bem os que chegam de fora. No entanto, nos meus onze anos de atuação com pesquisa e denúncia de violações de direitos humanos, noto uma particularidade da migração negra, de africanos e haitianos, que tem a ver com o racismo no Brasil. A questão racial incomoda uma parcela da sociedade e também os que estão no poder público. As violências são diretas ou indiretas: temos desde as pichações racistas nas universidades, até fogo no alojamento de estudantes africanos na UnB, passando pela prisão de quase 600 africanos e haitianos a três quadras da prefeitura de São Paulo, numa tarde de dia de semana.
Há ainda casos de morte, como os de Zulmira e Toni, e de agressão como o ataque recente aos haitianos também em São Paulo. No final do ano passado, durante a Marcha do Migrante, que sai da Praça da República e vai até a Sé, um senhor começou a gritar: “voltem para suas casas, o que vocês estão fazendo aqui?” Quem está nesse meio sabe que não ações isoladas: são violências que se repetem a todo instante. Aquela violência que talvez a pessoa não manifeste contra corpos de negros brasileiros vai manifestar contra corpos de africanos e haitianos.
RS: Você acha que a sociedade não toma conhecimento desses fatos ou prefere não tomar conhecimento?
AV: Existem os dois lados. Há alguns dias eu estava em um debate e no final uma senhora me abordou e disse: ‘meu filho, você só fala de coisas negativas!’. Bem, eu gostaria de falar de outras questões, mas justamente porque boa parte da população não toma conhecimento desses fatos eles têm que ser divulgados. Muitos desses imigrantes nunca sofreram racismo nos países de origem e estão começando a lidar com isso pela primeira vez na vida aqui. Uma amiga da Guiné-Bissau me contou que foi barrada num banco onde tinha conta porque, segundo o segurança, “não tinha cara de brasileira”. É um choque, porque as questões étnicas nos países de origem são diferentes, e aqui eles conhecem o racismo à brasileira. Acredito que ainda haja resistência a fazer uma autocrítica, e por isso a sociedade se apegue àquela imagem de que acolhemos bem todos.
RS: Você acha que esse tema fica muito escondido ou é até negado para que não se comprometa essa ideia do brasileiro acolhedor, que é particularmente forte em São Paulo?
AV: Exatamente. Até do ponto de vista jurídico: o Estatuto do Estrangeiro, ainda em vigor, é uma lei de 1980, da época da ditadura militar. A primeira vez que a sociedade e o poder público tentaram pensar em potencializar políticas públicas para migrantes foi em 2014, na Comigrar (Conferência Nacional sobre Migração e Refúgio). 2014! Ou seja, estamos muito atrasados.
O mito do acolhimento sempre atrapalha: para que criar políticas públicas para quem está em situação de vulnerabilidade se nós somos ‘bons acolhedores’? Em São Paulo, temos migrantes encaminhados para albergues destinados à população de rua, o que é um absurdo. A pessoa não fala português e os funcionários não falam outras línguas. Trata-se de outra demanda, outra particularidade. Há conflitos e preconceitos dos moradores de rua contra os africanos e haitianos, porque existe um repertório de ideias que se reproduz independentemente da classe social.
RS: Em 2011, o secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, contestou críticas que você havia feito sobre a política de refúgio no Brasil. Ele afirmou, numa reportagem do Estadão, que o Brasil tem números de expulsão e repatriação infinitamente menores do que os dos países europeus, e que 99% das expulsões estão relacionadas a tráfico. Essas alegações são procedentes?
AV: Na minha avaliação, ele misturou um pouco a questão do refúgio com a dos migrantes. Temos relatos de que, nas fronteiras e aeroportos, é o próprio agente público no local que determina quem recebe refúgio ou não. A função dele não é essa, e sim a de encaminhar o caso para Brasília, onde a questão será avaliada. Assim, certas autoridades violam os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Quem não consegue o estatuto de refugiado acaba buscando outra forma de se regularizar. Ou seja, há uma migração irregular produzida pelo próprio Estado.
A anistia de 2009 (aos estrangeiros em situação irregular no país, de acordo com a Lei 11.961) foi muito bonita no discurso, e muitos amigos achavam que o Brasil estava dando um exemplo para o mundo. Eu dizia: vamos sair do texto e ver o que acontece no terreno. Foram só seis meses para encaminhar o pedido, de julho a dezembro; houve pouca divulgação na imprensa; as taxas eram caras – além da Polícia Federal, os consulados dos países também cobravam. Foram 40 mil anistiados na primeira instância, enquanto temos uma estimativa de 150 mil a 600 mil estrangeiros indocumentados no Brasil. De africanos, foram menos de três mil, o que é muito pouco perto de um número que desconhecemos, mas acreditamos que seja bem maior do que aquele que o poder público estima.
A segunda fase era comprovar que estavam trabalhando. Pedimos os dados para o governo e até hoje não sabemos exatamente quantos foram os anistiados no total. Para mim, a anistia não funcionou. Quando se fala de política migratória brasileira, entre o discurso e a prática há um abismo.
RS: E a alegação a respeito de traficantes se justifica?
AV: Creio que há um preconceito institucionalizado dos agentes e do poder público. Há presos de dezenas de nacionalidades por envolvimento com o tráfico na penitenciária de Itaí (interior de São Paulo): espanhóis, franceses, alemães… Mas, no imaginário sociológico brasileiro, geralmente a categoria “africano” resvala para “nigeriano” e, automaticamente, “traficante”. É isso o que justifica o episódio das prisões de março de 2012 no centro de São Paulo: aos olhos do poder público, está institucionalizado que africano é traficante.
O tratamento é diferente em relação a outras nacionalidades. Mas, claro, há todo um conjunto de situações, e aqueles que estão em situação indocumentada, sem possibilidade de conseguir um emprego formal, podem cair nas redes de crime e ser cooptados.
RS: Você também menciona o chamado Conector do Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP) como uma área em que ocorrem muitas violações. Por quê?
AV: Juridicamente, aquilo nem existe. Na Europa há mecanismos legais para regulamentar as prisões ou quarentenas para migrantes. Mas aqui, quando se passa pela Imigração, pode-se alegar falta de documentos e as pessoas ficam ali esperando alguma forma de regularização – ou a deportação. Há casos de pessoas que estavam com toda a documentação regular e foram detidas. Outras chegam a ficar semanas ou meses ali. É um limbo jurídico, no qual uma das poucas autoridades que entram é a Defensoria Pública.
No ano passado, cerca de 300 pessoas ficaram no Conector. E não é só ali. Houve um caso no Porto de Paranaguá (PR), em 2011, com nove nigerianos que vieram num navio. Muitos embarcam e viajam clandestinamente nos porões achando que o destino é a Europa, e só na chegada descobrem que vieram parar no Brasil. Um delegado falou numa entrevista que não permitiu a entrada dos nigerianos porque eles poderiam ser “terroristas, ameaças à segurança pública, à segurança nacional e à saúde pública”! O que ele deve fazer é acolher, formalizar a ocorrência e aguardar que Brasília responda sobre o pedido de refúgio. Não cabe a ele decidir quem entra ou não. Os nigerianos só conseguiram ficar no país porque houve repercussão na mídia. Se isso acontece em grandes portos e aeroportos, é de se imaginar o que se passa em regiões mais distantes. Certamente há muitos outros casos que sequer conhecemos. Muitos haitianos, por exemplo, mesmo com visto humanitário, foram barrados no Brasil. Ou seja, eles não tiveram nem o direito de pedir refúgio.
RS: De outra parte, há uma migração de europeus fugindo da crise econômica em seus países. Nesse caso, sua entrada aqui não é questionada, não é?
AV: Pois é – e chegam também muito mais latino-americanos, mas a grande preocupação é com a migração negra. Esses meninos africanos e haitianos são majoritariamente jovens, na casa dos 20 ou 30 anos, e muitos têm formação superior em seu país de origem. Na comunidade congolesa, por exemplo, um dos meninos cursou administração, fala inglês, francês e línguas locais, mas o que ele conseguiu por aqui foi ‘bico’ de descarregar caminhão de madrugada, e ainda ganhando menos que os brasileiros.
No fundo, estamos falando de um número de pessoas tão irrisório… São pouco mais de 1 milhão de migrantes regulares, num país de 200 milhões de pessoas. Nos Estados Unidos, talvez sejam 10% da população.
RS: O que precisaria mudar para que a ação desses agentes na ponta do sistema fosse diferente?
AV: O que está se discutindo com a nova Lei de Imigração [em debate no Congresso Nacional] é a possibilidade de se criar a chamada Autoridade Nacional Migratória, mas a sua composição ainda me parece vaga. Mesmo que este seja um corpo civil, dificilmente a Polícia Federal vai abrir mão do seu monopólio nas fronteiras. Essa dicotomia está sempre presente no Brasil: podemos ter ótimas leis, como a de Refúgio, mas de que adianta se ela não é seguida? Menos de 1% dos solicitantes consegue mudança de uma decisão contrária na primeira instância. Uma coisa é ser um refugiado como o Cesare Battisti, outra é a esmagadora maioria anônima que vem em porão de navio. De qualquer maneira, todos os efeitos de novas leis, regulamentos ou criação de órgãos precisam ser avaliados no médio e longo prazo.
Em São Paulo, temos uma Coordenação de Políticas para Migrantes na prefeitura, mas ainda ocorrem ações questionáveis nas ruas. Há vários artesãos senegaleses na Praça da República que reclamam que a fiscalização e as abordagens sobre eles são maiores do que com outros, sejam brasileiros ou de outras nacionalidades. Mesmo com essas novas instâncias, na prática as coisas ainda não mudaram muito.
RS: Situar o número de estrangeiros indocumentados entre 150 mil e 600 mil é um leque enorme. Quando não há dados confiáveis, como criar políticas públicas eficazes?
AV: São várias instâncias que batem cabeça. Os vistos de trabalho, por exemplo, geralmente são concedidos pelo CNIg (Conselho Nacional de Imigração), do Ministério do Trabalho e Emprego. Já o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) está no Ministério da Justiça, que também tem outros departamentos para lidar com essas questões. Precisaríamos ter um órgão central com números oficiais para que assim pudessem ser trabalhadas as políticas públicas.
RS: Você diz que os movimentos negros do Brasil não conversam com os africanos. Por que isso acontece?
AV: É uma questão central. O principal instrumento para criar políticas públicas no Brasil são as conferências nacionais. Na última sobre igualdade racial [III Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial – Conapir, de 2013] não saiu uma linha sequer destinada à diáspora africana ou haitiana. Creio que, do ponto de vista das antigas lideranças do movimento negro, o resgate que se faz é sempre histórico, da descendência dos escravos, o que se reflete na implantação da Lei 10.639, sobre o ensino da História da África nas escolas. Mas há um distanciamento da África viva, que está presente aqui.
Parto do pressuposto de que há uma negação, uma tentativa de não querer enxergar essa realidade como um problema próprio. É aquele discurso: ‘já temos tantos problemas, agora mais os africanos e haitianos…’ Já ouvi falas de que ‘o negro estrangeiro não é problema nosso’. Muitas pessoas que foram lideranças do movimento negro e hoje estão em cargos centrais no poder público reproduzem a mesma prática e a mesma visão social. Por outro lado, os mais jovens já têm uma certa aproximação, talvez mais provocada pela comoção, como no caso do assassinato da Zulmira. Existe hoje uma multiplicidade de atores e associações. Os congoleses, por exemplo, têm umas quatro – ainda são grupos simples, sem reconhecimento jurídico.
Para potencializar o direito desses imigrantes, seria fundamental o movimento negro se inteirar, conhecer e estar junto. Há algumas pequenas ações, muitas vezes ligadas a questões culturais, de música, religião ou comida. Mas nas questões políticas não há uma agenda de luta programática.
Paulo Hebmüller
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