(O Globo, 29/10/2015) Há anos, as forças religiosas estão em campanha cerrada contra os serviços de aborto legal, e este é um dos fatores que explicam seu número tão reduzido
A disputa entre o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o governo da presidente Dilma Rousseff registrou, com a aprovação do PL 5069, sua primeira grande baixa: as mulheres pobres. São as que, se vítimas de violência sexual, precisam recorrer aos serviços públicos. Entre as unidades de saúde em todo o Brasil, apenas 15 efetivamente praticam o aborto legal, embora os serviços de referência sejam em torno de 60. Esse atendimento, que começou a ser implantado em 1989 pela então prefeita Luiza Erundina, no Hospital do Jabaquara, em São Paulo, só foi normatizado em 1999, quando pela primeira vez o Ministério da Saúde divulgou uma Norma Técnica estabelecendo protocolos médicos de avaliação multidisciplinar, todos postos no lixo pelo projeto de autoria de Cunha.
Se até aqui o parlamentar atirava contra o governo para ter moeda de troca contra a sua derrubada quando viessem à tona os descalabros das suas contas na Suíça, revelados os milhões de dólares desviados para o exterior, com o projeto, Cunha passou a atirar para provar que ainda pode falar em nome dos interesses da parcela mais conservadora da sociedade brasileira, sobrerrepresentada nos grupos neopentecostais, católicos radicais e nos seus aliados ruralistas.
A aprovação do PL serve como demonstração de liderança, reafirmação de poder e comprovação de que o baixo clero da Câmara o segue, apesar ou por causa dos dólares. Para provar sua força, Cunha investe num grupo particularmente vulnerável — mulheres vítimas de estupro — e promove ainda um retrocesso histórico do qual os serviços de saúde poderão levar anos para se recuperar. Foram dez anos de luta para que os protocolos de atendimento apoiassem as mulheres na busca da pílula do dia seguinte e as permitissem encontrar, em vez de censura, amparo nos médicos e na equipe de enfermagem, assistência social e psicologia. E foram mais cinco anos, considerando o lançamento da Norma Técnica e sua revisão em 2005, quando enfim foi eliminada a exigência do BO, do exame no IML e do constrangimento de comprovar um estupro.
Há anos, as forças religiosas estão em campanha cerrada contra os serviços de aborto legal, e este é um dos fatores que explicam seu número tão reduzido. O grande argumento (presente em documento distribuído para listas de e-mails de diferentes grupos católicos) é que o governo brasileiro articula estratégias para promover o aborto “e a única que, na prática, tem obtido algum sucesso é o financiamento maciço da rede de serviços de aborto em casos de estupro”.
Para os adversários do serviço de aborto para mulheres estupradas, o maior problema é que a palavra da mulher que chega afirmando ter sofrido violência deve ser recebida com presunção de veracidade. Esta regra, que foi a grande virada ética da Norma Técnica — dar credibilidade à mulher vítima de violência sexual — só poderia ter sido eliminada por um deputado cuja trajetória parlamentar indica que a nada do que ele diz ou faz se pode atribuir presunção de veracidade. Enquanto Cunha paga as contas da mulher e da filha com dinheiro desviado para a Suíça, por aqui, são as mulheres pobres que pagam a conta da combinação perversa entre corrupção, fundamentalismo e manipulação política do interesse público.
Carla Rodrigues é professora de Filosofia da UFRJ
Acesse o PDF: Mulheres pagam a conta de Cunha, por Carla Rodrigues (O Globo, 29/10/2015)