(Época, 03/11/2015) O Experiências Digitais adere à campanha #AgoraÉQueSãoElas e convida a jornalista Amanda Luz para escrever o texto de hoje
Nas últimas semanas, o Experiências Digitais dedicou algum espaço para tratar sobre o assédio de mulheres na internet. Os links estão distribuídos ao longo do texto. No feriado, cruzei com a campanha #AgoraÉQueSãoElas, uma iniciativa bem bacana. A ideia é ceder espaços em blogs e colunas comandados por homens para que mulheres possam falar sobre o que quiser. Convidei a amiga jornalista Amanda Luz, minha colega de Editora Globo, que prontamente topou o desafio. Ela assume a coluna de hoje:
Por que quase ninguém leva a violência contra mulheres na internet a sério
Por Amanda Luz*
Nos acostumamos a resolver problemas de trabalho por e-mail e ver fotos de filhos de amigos no Facebook antes de ir à maternidade. Deixamos de ir à locadora para assistir a séries e filmes no Netflix. Passamos um ano inteiro sem pisar na agência do banco pagando contas por aplicativos. Fazemos cursos online e passamos horas de nossos dias interagindo com amigos e familiares nas redes sociais. Na prática, a internet tornou-se nosso espaço de interação social, trabalho e lazer. Não há separação entre o mundo virtual e o mundo real. Mas ainda há quem pense na internet como um espaço meramente virtual, onde as informações flutuam magicamente. E, se é algo virtual, logo, não é real, certo? Errado. Por isso, lutar contra a violência à mulher na internet é tão importante quanto lutar contra a violência no mundo físico.
No último mês de março, Juliana (Jules) de Faria, fundadora do grupo feminista Think Olga, e eu apresentamos um painel “Por que a internet odeia as mulheres” no South by Southwest Interactive (SXSW), um dos principais eventos de cultura digital do mundo. A ideia era discutir de forma ampla a violência contra a mulher a internet. Uma das questões que levantamos foi justamente como o assédio na internet não é tratado com a devida importância. Como se a web não fosse tão espaço público quanto é a rua. Tivemos a experiência transformadora de falar sobre o assunto sob a perspectiva da realidade brasileira, debater com ativistas do mundo todo e ter divulgação em diversos veículos internacionais.
Para a edição do ano que vem, o SXSW tinha decidido ampliar o debate com dois painéis sobre o Gamergate, como é chamado o caso da perseguição desleal de trolls, grupos de baderneiros virtuais, às mulheres que criticam a misoginia em games. Uma ano atrás, ÉPOCA publicou uma reportagem explicando essa guerra contra as mulheres nos videogames. Há alguns dias, porém, veio a ingrata surpresa: o SXSW anunciou que iria cancelar ambos por segurança ao receber ameaças de atentado durante os painéis. Tão grave quanto a possibilidade de violência, foi um evento do tamanho do SXSW ceder aos trolls e reforçar o silenciamento a que essas vítimas já estão sujeitas. Diante de críticas de ativistas e de parceiros, como Buzzfeed e Vox, o SXSW voltou atrás: pediu desculpas pelo cancelamento e divulgou a criação de um dia inteiro de programação dedicado ao assédio online.
“Pessoas normais” x monstros virtuais
Se um homem agride uma mulher numa praça pública de uma grande cidade brasileira, é possível que ele seja linchado. Na internet, no entanto, a agressão contra mulheres costuma ganhar apoio de quem desconfia de que “ela fez por merecer”. Muitas pessoas só consideram que há violência quando há agressão física. É justamente no detalhe entre mundo virtual e mundo digital que faz com que pessoas que normalmente não agrediriam alguém na rua ou no metrô se vêem confortáveis em ameaçar uma mulher de estupro porque ela emite as opiniões que não as agradam.
A jornalista Nana Queiroz, que criou a campanha online “Eu não mereço ser estuprada”, em 2014, foi alvo de inúmeras ameaças de estupro e deu queixa na Delegacia da Mulher. Um dos homens encontrados pela polícia, e que tinha deixado uma das mensagens mais gráficas, era o que chamaríamos de um “cara comum”, sem ficha criminal. E ele, ao ser questionado, apenas disse “era uma brincadeira, ela é que não tem senso de humor”. Esse caso não é isolado, nem no Brasil, nem no exterior. Muitos trolls são “pessoas normais” que, com a facilidade de acesso que a internet permite, ferem a reputação ou torturam psicologicamente uma mulher com comentários e ameaças.
Muitas vezes, o assédio pode começar digitalmente e se tornar físico, como no caso da jornalista Ana Freitas, que escreveu um artigo relatando a misoginia no mundo dos games. Por semanas, ela recebeu em sua casa uma série de pacotes pelo correio, de todos os tamanhos e formas, vindos de todo tipo de destinatário, de grandes lojas a vendedores do Mercado Livre. Dentro deles, vinham brinquedos eróticos, esterco, vermes de mosca, livros para emagrecer, camisetas com montagens feitas a partir de suas fotos, entre outras barbaridades. Ana, sua família e até seus vizinhos sofreram ameaças.
De novo: se uma ameaça feita na internet afeta a vida offline, então deve ser considerada tão nociva quanto uma violência offline. Deve ser tratada como um crime do mundo real. Forçar as vítimas a ficar offline ou proibi-las de emitir a opinião livremente significa privar as pessoas de ocuparem o espaço público. A violência contra a mulher na internet não é um problema tecnológico e não é um problema de ordem privada. É uma questão social, urgente e de ordem pública. Qualquer tentativa de relativizar esse problema como algo menor é abrir caminho para que mais “gente normal” parta para o discurso do ódio e cometa crimes sem medo de sofrer qualquer tipo de punição.
*Amanda Luz é jornalista e especialista em estratégias digitais, atualmente responsável pela produção editorial do Estúdio Globo, área de criação de branded content para todas as marcas da Editora Globo.
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