(OperaMundi, 02/01/2016) Jornalista do ‘Le Monde’, Annick Cojean dedicou sua cobertura da Primavera Árabe na Líbia para denunciar o estupro e as violações de direitos das mulheres
“A guerra é sempre uma reivindicação dos homens. Mas e as mulheres? Elas nunca são ouvidas, mas são sempre as grandes vítimas”, afirma a jornalista francesa Annick Cojean. No último mês, ela veio ao Brasil para um debate com colegas de profissão brasileiras no teatro da Aliança Francesa, no centro de São Paulo, sobre a importância da cobertura feita por mulheres e sobre as mulheres em zonas de conflito.
Repórter especial do jornal Le Monde, Annick esteve na Líbia em 2011 para participar do processo revolucionário inspirado na Primavera Árabe que resultou na deposição – e morte em praça pública – do ditador Muamar Kadafi.
Fugindo da cobertura padrão, a jornalista centralizou suas investigações acerca de um dos tópicos mais indizíveis no interior da sociedade líbia: o estupro como arma de guerra e de dominação, assim como a violação das mulheres como política de Estado, perpetrada metodicamente por ninguém menos que Kadafi durante seu regime.
Justamente por focar na questão do sofrimento e do papel das mulheres em conflitos, sua estadia de três meses no país norte-africano lhe rendeu um dos seus trabalhos mais reconhecidos, o livro “O Harém de Kadafi” (Ed. Verus). “O estupro não é uma euforia, mas uma estratégia muito bem organizada. No meu livro, não quis saber qual é a vida sexual de Kadafi, mas sobre a organização sistemática da sua cultura do estupro”, argumenta.
Para Annick, em uma cobertura de guerra é preciso de imediato dar sempre voz às vítimas do conflito e ter sempre um cuidado particular às mulheres, entendendo a complexidade das sociedades sobre as quais vai escrever e tomando cuidado para não cair em clichês e orientalismos.
“Claro que levo em conta que sou uma mulher, francesa, europeia, e isso vai afetar meu olhar sobre as jovens líbias com quem eu conversei, mas tento me aproximar ao máximo dos relatos. É impossível ser objetiva, mas busco sempre ser o mais honesta possível”, ressalta em entrevista a Opera Mundi.
Na Líbia, assim como em muitos países ao redor do mundo, o estupro é visto como um crime de honra, gerando uma dupla punição à vítima: culpa e vergonha. Com esses fenômenos, o tema torna-se um tabu e poucas se sentem confortáveis para denunciar seus casos, sendo muitas vezes expulsas das suas famílias, como é o caso da jovem Soraya, protagonista do livro-reportagem de Annick que ficou presa por anos no harém de Kadafi.
“Eu espero que esse livro seja um engajamento contra esse silêncio [das violações dos direitos das mulheres], porque esse silêncio é insuportável”, comenta a autora francesa.
Para ela, passada a denúncia desta cultura de estupro, é fundamental dar um passo além: já que o principal ator das violações de direitos são homens, é preciso mais do que nunca colocar as mulheres à frente dos processos de paz.
“Recentemente, a ONU tem discutido o papel das mulheres na mesa de negociações de paz em suas resoluções. Sistematicamente, as mulheres são muito mais eficazes para as negociações de paz: elas discutem tópicos e abordagens que homens jamais teriam pensado, estados de reflexões e preocupações e de como fazer reconciliações nacionais”, argumenta.
“Enfim, são temas que concernem também às mulheres, afinal, somos uma em cada duas pessoas no mundo e cada vez mais se percebe que somos apenas nós, mulheres, que iremos fazer a diferença para fazer a paz. As mulheres têm que estar no topo desse processo de paz”, diz.
Aos olhos de Annick, o feminismo é um humanismo, um modo de ser consciente perante a desigualdade. “Essa injustiça face às mulheres e em todas as sociedades não é normal. É preciso se manter vigilante e denunciar essas injustiças, não tendo um olhar dormente de ‘ah! Isso é normal e sempre foi assim!’. Não, não e não”, finaliza.
Patrícia Dichtchekenian
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