(O Globo, 07/01/2016) Durante anos, o preconceito e o ódio andaram lado a lado com indicadores sociais bem claros no país
O que não falta na Alemanha ultimamente é um clima meio direitista, embora a maioria tenha o cuidado de não usar a retórica anti-imigração. Menos Björn Höcke.
No mês passado, o líder da facção populista de direita Alternative für Deutschland fez um discurso explicitamente racista sobre as “estratégias reprodutivas diferentes” de africanos e europeus. Não é a primeira vez que ele apela para os temas do nacional-socialismo, mas dessa vez causou furor, mesmo dentro do partido, que inclusive pediu que o deixasse.
Não se sabe o que acontecerá com Höcke, mas sua disposição em usar uma linguagem abertamente preconceituosa reacendeu um medo antigo no país. Segundo consta, ele é um alemão típico, o cidadão classe média honrado, o chamado “Biedermann“ em que se baseia a nossa autopercepção nacional. Se esse segmento se voltar para o lado negro, o que isso quer dizer a respeito da Alemanha?
Durante anos, o preconceito e o ódio andaram lado a lado com indicadores sociais bem claros neste país: para a grande maioria, os racistas tinham a cabeça raspada, usavam botas pesadas e os braços cobertos de tatuagens. Viviam às margens da sociedade, quase sempre em conjuntos habitacionais do governo, e ganhavam a vida ilicitamente.
Só que Höcke não é assim: quando jovem, foi membro da Jovem União (”Junge Union“), organização juvenil da União Democrata Cristã, partido de centro-direita a que pertence a chanceler Angela Merkel; é professor de História do ensino médio, casado e pai de quatro filhos. Vive no interior e está sempre bem vestido, embora nunca de forma exagerada.
É essa a nova face do ódio na Alemanha? A palavra “Biedermann“ é de difícil tradução; tem um histórico cultural antigo e complexo. Remonta à figura literária de Gottlieb Biedermaier, inventada nos idos de 1840 por um grupo de intelectuais como paródia da brandura e estupidez da classe média daquela época conservadora.
Assim como Björn Höcke, o personagem era um professor interiorano. Há, porém, diferenças cruciais entre ambos: Biedermaier não era misantropo; seus inventores o retrataram como sendo totalmente apolítico e sua autoexpressão se limitava à publicação de poemas ruins que elogiavam apaixonadamente o cultivo da batata.
Apesar disso, desde o início, Biedermaier — e o tipo que representava, o “Biedermann” — era suspeito de preconceito. Em sua organização e conformismo parecia haver uma semente de compulsão, o tipo de vício na estabilidade e continuidade que, quando ameaçado, se transforma em agressividade.
Na Alemanha pós-guerra, os Biedermänner eram (e ainda são) vistos como o fator que permitiu a chegada de Hitler ao poder. Ao mesmo tempo, as gerações de alemães de classe média que vieram após o conflito provaram ser infalivelmente centristas, levemente conservadoras, mas fortemente comprometidas com o modelo .de capitalismo social e sua constituição pacifista – tanto que aceitaram os milhões de turcos que chegaram nos anos 50 e 60, assim como os refugiados dos Bálcãs, nos anos 90.
Só que esse estado de coisas pode estar novamente se alterando. Todo mundo questiona se Björn Höcke está sozinho, se representa alguma coisa, se incendiará o país ou se é apenas um maluco isolado.
Na internet, a impressão é a de que há muitos como ele, e até piores. Em meio a fotos de gatinhos cochilando no peitoril de janelas que se abrem para jardins floridos, os “Biedermänner” (e “Bieder-frauen”, a versão feminina) se deixam levar por fantasias violentas de “reconstrução” dos campos de concentração, de extermínio dos imigrantes com granadas de mão, machados, chamas.
Quem realmente são esses haters, ninguém sabe; não há estudos representativos, apenas pistas aleatórias. Desde meados de 2015, vários alemães vêm sendo multados e até demitidos, principalmente depois que comentários de ódio postados na rede foram escancarados pela imprensa ou expostos por ativistas. Os autores de vários deles tinham o perfil dos “Biedermänner”: uma cuidadora de idosos da Turíngia, um estagiário da Porsche na Áustria. Um exame mais detalhado, porém, revela que diversos já tinham afinidades extremistas bem claras, tendo “curtido” e compartilhado vídeos ligados à extrema direita muito antes do início da atual onda de imigração em massa.
De fato, os sociólogos tendem a ver as demonstrações anti-imigração atuais e a intensificação dos comentários de ódio simplesmente como um aumento na visibilidade do pensamento racista que já existia e não como uma mudança de mentalidade.
A mesma impressão um tanto ambígua se reflete nas pesquisas: as novas enquetes mostram o apoio ao Alternative für Deutschland estagnado entre oito e dez por cento. Muitos de seus partidários não são propriamente racistas, mas simplesmente gente cansada dos partidos maiores.
Entretanto, nada disso alivia os temores alemães. A ausência de uma definição clara que é particularmente desconcertante. É como uma dor não-localizada, um mal sem nome que gera desconforto.
A verdade é que há um risco oculto. Se permitirmos que gente como Höcke manche a reputação dos “Biedermänner”, a Alemanha pode criar e realizar sua própria profecia, jogando-os para a extrema-direita e desestabilizando a política nacional. Por mais risível que o Biedermann tenha sido para seus criadores, por mais perigoso que tenha parecido ser para os reformistas pós-guerra, a Alemanha não pode viver sem ele.
Por Anna Sauerbrey, do New York Times
Acesse em pdf: Artigo: A nova face do racismo na Alemanha (O Globo, 07/01/2016)