(Época, 10/01/2016) Como agir diante de discriminação? Para descobrir meu jeito, precisei de alguns anos, criei um blog e partilhei com milhares essa viagem de autodescoberta
Chegou a maria sapatão. Está de vestidinho hoje! Cadê o bermudão e o boné?” Baixei a cabeça, v -i fingindo não ouvir os gritos das outras crianças. Naquele dia, minha mãe havia me forçado a sair de casa com um vestido branco. Era uma tentativa de evitar que a filha, de 10 anos, usasse roupas consideradas masculinas. Não a culpo. Ela, como muitas outras mães, era refém de um discurso que impõe como cada um deve se vestir e se portar e que coloca “feminino” e “masculino” em caixinhas bem fechadas. Meus colegas, mesmo crianças, já haviam adotado a mesma norma. Não aceitavam que eu transgredisse o padrão. Cheguei a reagir com violência: mandava calar a boca e ameaçava bater neles. Minha reação só intensificava as chacotas. Eles riam mais e ampliavam o vocabulário com novas ofensas, além de “machona” e “sapatona”. Quando percebi que minha raiva não os deteria, passei a fingir que não ouvia os xingamentos. Eles continuaram a vir, muitas vezes pelas janelas do prédio vizinho. Eram crianças gritando com o rosto escondido. Conheci o discurso de ódio antes mesmo de sentir desejo por outra mulher. Depois de tentar reagir com raiva e de tentar fingir não ouvir os xingamentos, experimentei várias outras formas de lidar com as agressões, ao longo dos anos. Hoje, quando necessário, parto para o confronto.
Antes disso, tentei me adaptar ao padrão imposto às meninas. Aos 12 anos, contei a minha mãe que estava apaixonada por um garoto do colégio. Percebi nela um suspiro de alívio e perguntei: “Por que isso, mãe? Achou que fosse por uma garota?”. Ela respondeu negativamente, mas eu sabia que estava mentindo. Minha mãe estava nitidamente feliz por descobrir que a filha se interessava por garotos. Realmente, interessei-me por eles. Namorei alguns e fui esquecendo a menina moleca que tachavam de “maria sapatão”. Estava rendida ao que a poetisa e feminista Adrienne Rich chamou de “heterossexualidade compulsória”.
Quando entrei na adolescência, entre meus 16 e 17 anos, formei um novo grupo de amigos. Eles gostavam de beber, fumar e tocar violão até de madrugada. Eu era chamada de “careta” e evitava falar de sexo. Uma vez, numa roda de garotas, uma delas questionou quem teria coragem de beijar outra mulher. Todas negaram. Uma afirmou que teria nojo (anos depois, ela beijaria). Beijar uma mulher era minha fantasia, meu maior desejo. Sonhava com isso. Mas disse “não, nunca beijaria”. Senti-me envergonhada por mentir. Diante de comentários preconceituosos, eu havia adotado a tática de reagir de forma branda. Tinha medo de gerar desconfiança. Quando ouvia os garotos chamando alguém de bicha, dizia algo como “parem de fazer isso, coitado do menino”. Se insistiam, eu dava um meio sorriso e desconversava. Algumas amigas criticavam a “aparência masculina” de outras garotas. Eu falava apenas que cada um deveria se vestir como achasse melhor.
Sei que essa dificuldade de reação é comum, mesmo entre aqueles que sabem ser errado discriminar. Fiz uma enquete on-line por meio de meu blog, o SouBi. Das 3.199 pessoas que responderam, 95% informaram ser bissexuais ou ter dificuldade para se definir – ou seja, não se encaixam no padrão heterossexual. Mesmo assim, 15% afirmaram nunca ter defendido publicamente gays e 22% afirmaram já ter falado mal de gays apenas para agradar a outras pessoas. Achar graça em comentários preconceituosos ou reproduzi-los parece um jeito fácil de conseguir aceitação.
Talvez eu tivesse ficado na mesma, não fosse o beijo inesperado de uma amiga de faculdade para quebrar minha inquieta negação. Estávamos em uma festa, na casa de praia de uma amiga. Ela me levou a um local reservado e encostou os lábios nos meus.
Foi maravilhoso e estranho. Aos 23 anos, dei o primeiro beijo lésbico de minha vida. Aquilo não pareceu tão perturbador porque eu estava com a turma da faculdade. Meus colegas no curso de jornalismo falavam abertamente sobre tudo, e as meninas não viam problema em discutir sexo, masturbação e beijo gay. Era muito bom.
Eu me sentia mais livre. Os tabus de minha adolescência haviam desaparecido, e comecei a me relacionar com mulheres. Apesar da leveza, demorei a contar sobre o beijo para outras amigas. Julguei que elas não iriam mais querer trocar de roupa na minha frente ou ficariam imaginando que, em algum momento, eu me apaixonaria por elas. Eu não queria ser olhada de forma diferente. Acho que esse é um dos principais medos de qualquer lésbica ou bissexual quando decide contar às amigas sua identidade sexual.
Aos 25 anos, comecei a namorar Raquel. Após seis meses de namoro, fomos morar juntas (estamos casadas há cinco anos). Mas eu ainda tentava me esquivar dos confrontos e reagir de maneira suave diante dos preconceituosos. Há três anos, fui convidada para o casamento
de uma amiga de colégio. Raquel não estava no convite, porque os noivos não sabiam dela, e eu, ao ser convidada, preferi não mencionar. Em uma roda de conversa na festa, uma colega perguntou se eu estava com alguém. Respondi que sim, mas, de novo, não tive coragem de mencionar Raquel. “Mas qual é o nome, nós conhecemos? Por que você não fala? Então, é uma mulher?” Minha resposta foi a pior possível: “Lógico que não é uma mulher”. Demorei mais alguns anos para perceber que minha omissão era a arma de minha opressão.
Mas eu estava mudando – acho que para melhor.
Entender quem eu era e o que eu sentia foi um caminho bem tortuoso. O apoio de várias de minhas amigas de faculdade era tão incisivo que muitas diziam para eu me assumir homossexual. Afirmavam que o termo bissexual era um eufemismo para lésbica. “Você é sapatão, Amanda, assume logo e desce do muro.” E então eu as questionava: “Vocês conheceram meu ex, sabem que eu o amei de verdade, como podem dizer isso?” E elas respondiam rindo: “Era uma relação bonita, mas, no fundo, você sempre gostou é de mulher”. Demorou até elas entenderem que eu me identificava mais com a bissexua-lidade. A jornada de autodescoberta foi um dos motivos de eu ter criado o BlogSouBi, em 2011. Queria compartilhar meus sentimentos e pensamentos sobre bissexualidade. Descobri muita gente com histórias parecidas com a minha, mulheres e homens, garotas e garotos. O projeto cresceu, e hoje recebo páginas e páginas de dúvidas, pedidos de orientação e revelações de pessoas contando, pela primeira vez, o que nunca tiveram coragem de falar para ninguém.
A Raquel ajudou. Ela sempre tenta enfrentar a discriminação. Numa aula de pós-graduação, mostrou uma foto nossa a uma colega de classe, para deixar claro que era casada com uma mulher. Uma vez, saindo de uma casa noturna, o manobrista se dirigiu a nós: “Estão saindo porque o lugar é gay, né? Vocês não devem ter gostado”. Minha mulher respondeu, sem pestanejar: “Amigo, nós somos um casal gay. Vamos embora porque não gostamos da música”.
Em 2014, estávamos na casa de uma amiga, num grupo. Assistiríamos juntos ao último capítulo da novela Amor à vida, para ver o tão esperado beijo gay entre os personagens Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso). Eu estava agindo normalmente com Raquel, com beijos e abraços, até a chegada de uma amiga que ainda não sabia de nós. Automaticamente, afastei-me da Raquel. Ela me chamou para um canto e disse que não havia gostado da atitude. “Por que você se afastou? Está com vergonha?” Confessei que havia me sentido desconfortável, refleti e voltei a abraçá-la normalmente. Minha atitude era totalmente contraditória com o que estávamos fazendo, torcendo pelo beijo gay na novela. Talvez eu tenha sido tão hipócrita quanto aqueles que torciam na internet para o beijo gay não acontecer. Depois desse dia, passei a me observar mais quando estamos as duas na casa de amigos. Sempre procuramos nos tratar da maneira mais natural possível.
Também me ajudou a reconsiderar minha postura um artigo da neuro-cientista Suzana Herculano-Houzel.
Ela afirmava que mentir dá muito trabalho ao cérebro e que viver mentindo deveria ser extremamente cansativo.
É verdade. Sempre foi muito exaustivo ter de pensar duas vezes antes de responder se eu tinha um relacionamento e inventar histórias. Foi um grande alívio passar a falar de boca cheia “sou casada com a Raquel”.
De uns dois ou três anos para cá, passei a falar abertamente sobre meu relacionamento e a nunca tratá-lo como se fosse motivo de vergonha.
Antes, só nos beijávamos em locais LGBT (ou seja, amigáveis com lésbicas, gays, bissexuais e transexuais).
Passamos a nos beijar em qualquer restaurante, mas sempre um selinho rápido, que pode escapar a olhos desatentos. Muitos não julgam que somos um casal por estarem presos a estereótipos. Acham que, num casal de mulheres, uma das duas precisa ter um aspecto considerado masculino. Então, passamos por amigas.
Quando Raquel e eu celebramos cinco anos juntas, minha mãe afirmou estar contente por nós. Disse o que todo filho espera ouvir: “Só quero que você seja feliz”. Minha irmã também ajudou bastante. Ela passou a contar naturalmente, a qualquer interlocutor, que eu era bissexual. Em um primeiro momento, isso me preocupou. Perguntei o que as pessoas respondiam. Ela me disse uma frase que nunca vou esquecer: “Amanda, as pessoas vão te achar mais interessante por isso, você vai ver”.
Nesse mesmo período, passei também a recriminar prontamente quem faz piadinha homofóbica. Sem a raiva que eu tinha na infância, mas com firmeza. Em
alguns círculos profissionais, ganhei fama de chata e politicamente correta. Os piadistas insistem em defender o que fazem. “É só brincadeira, Amanda. Pare de ser tão chata”, dizem. Quem faz a chacota não percebe que ajuda o preconceito a se reproduzir e agride, sem saber, conhecidos que também são lésbicas, gays e bissexuais. Alguns colegas não assumidos já me disseram preferir ficar calados, rir da piada ou endossar a reprodução da ignorância. Acreditam que reagir não trará nenhuma mudança e temem o efeito, sobre suas carreiras, de adotar uma posição anti-homofobia iro trabalho. “Numa empresa, assumi que era gay e deixei de ser promovido. Quando passei a omitir isso, ganhei mais respeito”, disse um deles.
Assumir publicamente minha identidade e minhas escolhas continua a ser difícil. Adoro andar de mãos dadas, mas não fazemos isso na rua, porque em São Paulo ainda há muita violência contra casais do mesmo sexo. Preferimos não arriscar.
Também tivemos de lidar com o lado negativo da exposição. Precisei levar meu carro a um mecânico e Raquel me indicou um conhecido, que a atendia havia anos. Ela ficou no carro enquanto eu negociava o pagamento. De repente, ele questionou se tínhamos um relacionamento. Respondi que sim. “Ah, e cadê os namorados?” Respondi que o relacionamento era entre nós duas. Ele arregalou os olhos. “Algum problema com isso?”, perguntei. Ele se sentiu à vontade para cometer um assédio grosseiro, mesmo perdendo as clientes. “Queria entender como funciona o sexo entre vocês”, disse. Saí rapidamente do lugar.
Apesar desses problemas, percebo que ganhei mais respeito de muita gente ao meu redor, após ter assumido publicamente que era casada com uma mulher.
Em uma entrevista em 2000 (transcrita na obra Judith Butler e a teoria queer, de Sara Salih), a filósofa feminista Judith Butler conta o episódio em que foi questionada por um garoto se era lésbica. Ele queria deixá-la constrangida. Ao responder “sim, sou lésbica”, Judith observou a surpresa no rosto do garoto com a resposta tão categórica. Ele não conseguiu insultá-la. Ficou surpreendido por ela ter se apropriado, com orgulho, do termo lésbica. Ela concluiu que foi um ato de poder. É esse tipo de ato poderoso que busco agora.
Amanda Camasmie
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