(O Globo, 14/02/2016) ‘Respeito Gloria Steinem, Madeleine Albright e todas as pioneiras feministas. Ainda assim, voto em Bernie Sanders’
O resultado das primárias desta terça feira em New Hampshire doeu muito, ainda dói e vai continuar a doer bastante para Hillary Clinton — pelo menos até ela conseguir (ou não) consolidar-se como a candidata única do Partido Democrata à sucessão de Barack Obama nas eleições de novembro próximo.
A temida rejeição neste início da disputa diante do septuagenário socialista Bernie Sanders e seu ruidoso séquito de jovens foi agravada por um fogo amigo que não fora calculado. Na verdade, foram dois os tiros contra, ambos com o mesmo potencial para ferir a campanha de Hillary numa das pilastras eleitorais que a candidata contabilizava como lhe pertencendo de direito: o voto democrata feminino e feminista.
Madeleine Albright, como se sabe, foi a primeira secretária de Estado dos Estados Unidos (precursora de Hillary no cargo, portanto), ainda nos anos 1990, além de embaixadora dos EUA junto à ONU. Nomeada por Bill Clinton, foi adepta de uma realpolitikdura e deixou um rico glossário de frases memoráveis.
Agora, às vésperas das prévias em New Hampshire, ela subiu no palanque de Hillary, exigiu votos para a amiga e advertiu em tom tonitruante para seus 78 anos: “Há um lugar especial no inferno para mulheres que não ajudam umas às outras!”.
Poucas horas mais tarde, foi a vez de Gloria Steinem, a cultuada cofundadora da revista “Ms.” e líder feminista histórica dos anos 1970 ser entrevistada num programa de grande audiência e forte repercussão entre eleitores de tendência liberal. Indagada sobre o impacto do senador socialista junto ao eleitorado jovem feminino, Steinem deu uma resposta da qual se arrependeria mais tarde: “Quando você é jovem, você quer saber onde estão os garotos. E os garotos estão com Bernie”. O estrago estava feito.
Ultrajada por ter sua opção política atribuída a ímpetos dos feromônios, a brigada Sanders inundou não apenas as redes sociais como as cabines de votação. Resultado direto ou não, Hillary perdeu em New Hampshire não apenas entre mulheres de menos de 30 anos (por mais de 60 pontos). Perdeu também por sete pontos no voto feminino de todas as idades.
Nos dias seguintes, a premiadíssima atriz Susan Sarandon, do alto de seus 69 anos, cunhou uma frase durante um comício pró Sanders que se tornaria viral: “Não voto com minha vagina”. Uma eleitora de Bernie bem mais jovem, Allison Glennon, publicou uma carta aberta “às mulheres eleitoras de Hillary mais velhas” na qual explicava como pensa sua tribo:
“Respeito Gloria Steinem, Madeleine Albright e todas as pioneiras feministas. Ainda assim, voto em Bernie Sanders. Obrigada por tudo o que nos legaram através de suas lutas pelos direitos da mulher e dos direitos civis nos anos 50, 60, 70, 80. Como suas filhas, (…) sabemos da árdua luta que garantiu os direitos que temos hoje. Jamais vamos esquecer. E vamos dedicar nossas vidas também a seguir esse exemplo. Por causa de vocês, não deixaremos ninguém definir nossos limites baseados no nosso sexo. Por causa de vocês, seremos fortes face àqueles que querem nos julgar apenas por nosso gênero e não por nossos corações e mentes. Por causa de vocês, prometemos não deixar ninguém nos roubar ou comprometer a liberdade que temos hoje… nem mesmo vocês”.
A sempre incisiva ensaísta e crítica cultural Camille Paglia também emergiu para bater forte. “Steinem conseguiu insultar não apenas a inteligência e o idealismo das jovens como vaporizar cada fã lésbica de Sanders numa não-pessoa espectral”. Para Paglia, já era hora de o “politburo feminista” ser derrubado e de o público perceber o quanto o que chama de elite do poder sequestrou e manipulou a segunda geração do feminismo. “A refinada máscara humanitária de Steinem caiu, revelando a fascista mumificada que havia por baixo”. Caramba.
Este não é o primeiro nem será o último conflito geracional de mulheres progressistas nos Estados Unidos. No fundo, o choque atesta a vitalidade do debate em curso nas fileiras do Partido Democrata, totalmente ausente nos dilemas que atormentam os eleitores e movimentam a bizarra plêiade de candidatos do Partido Republicano.
Ainda assim, trata-se de um momento singular da vida politica americana. Como escreveu Ryan Lizza na “New Yorker” da semana anterior, na história moderna dos Estados Unidos jamais houve candidato democrata favorito tão forte como Hillary Clinton em 2016. Antes mesma da primeira prévia eleitoral, ela já tinha garantido o endosso de 12 governadores, 39 senadores, 151 deputados, US$164 milhões em dinheiro de campanha, e mais de 60% das intenções de votos dos democratas. Bernie Sanders, seu único adversário no partido, até agora só tem o apoio oficial de dois deputados.
Por que, então, às vésperas de Hillary ter chance real de tornar-se a primeira mulher presidente dos Estados Unidos, a primeira comandante-em-chefe da maior superpotência mundial, esse fator não está tendo o peso histórico que a negritude de Barack Obama teve na eleição de 2008?
Em parte porque Hillary já faz parte da cúpula do poder há mais de três décadas, em diversas modalidades, e o último degrau a ser conquistado por ela não é mais visto como prioridade única. Talvez isso, por si, seja a sua maior conquista.
Dorrit Harazim é jornalista
Acesse o PDF: Ser mulher não basta, por Dorrit Harazim (O Globo, 14/02/2016)