(O Estado de S. Paulo, 07/04/2016) Com a epidemia de zika e suas consequências, como a microcefalia, o Brasil tem um longo caminho a percorrer a respeito da preservação dos direitos humanos de uma geração de crianças com necessidades especiais e suas famílias. Conversamos com a Doutora Rosana Paiva, Infectologista e Especialista em Saúde Pública, sobre as consequências deste cenário e os deveres do Estado no atendimento a essas pessoas.
Segundo ela, a situação ainda é alarmante e com muitas interrogações. “A Organização Mundial da Saúde alertou que o Brasil não está combatendo com sucesso as infecções transmitidas pelo mosquito, principalmente pelo Zika vírus. Basta ver o crescente número dos casos notificados e suspeitos da doença e das complicações associadas”, comenta a especialista. Além disso, ela diz que a parcela pobre da população é a mais prejudicada, devido à falta água potável e saneamento básico. “Apesar disso, a doença pode acontecer em todos os estratos populacionais, com as mesmas consequências negativas para as pessoas e suas famílias.”
Confira os melhores trechos da entrevista:
Blog Era Uma Vez: O surto de microcefalia tem levantado muitas questões, como a associação da doença ao zika. Mas do ponto de saúde pública, quais são as consequências e os deveres do Estado no atendimento a essas crianças?
Microcefalia não é um agravo novo. Trata-se de uma malformação congênita, que pode ser efeito de uma série de fatores de diferentes origens, como radiação, substâncias químicas e agentes biológicos infecciosos, como bactérias e vírus. A associação Zika vírus e a emergência da epidemia de microcefalia têm trazido inquietações que devem ser elucidadas. Um dos alertas é sobre a realidade socioambiental dos locais de moradia das mães de crianças com microcefalia. A maior incidência é nas áreas mais pobres, com urbanização precária, com saneamento inadequado, com imensa presença de resíduos sólidos nas residências e com provimento de água intermitente, levando ao armazenamento não seguro de água, condição muito favorável para a reprodução do Aedes aegypti.
Também em 2014, ano da provável introdução do Zika vírus no Brasil, foi iniciada a utilização de um novo larvicida, o Pyriproxyfen, que é teratogênico e inibe a formação do inseto adulto, o que coincidiu com as observações de aumento de casos de malformações congênitas e microcefalias. Para gestantes, recomendamos apenas o uso de repelente, mas o DEET vem sendo comercializado sem restrição para mulheres grávidas – outra banalização de exposição química. Visando eliminar o mosquito as ações podem acabar prejudicando os seres humanos.
A situação é alarmante, com muitas interrogações. A Organização Mundial da Saúde alertou que o Brasil não está combatendo com sucesso as infecções transmitidas pelo mosquito, principalmente pelo Zika vírus. Basta ver o crescente número dos casos notificados e suspeitos da doença e das complicações associadas.
Blog Era Uma Vez: Quais são os deveres do Estado neste caso?
Ações para a preservação da saúde são competência do poder público conforme determina a constituição, sendo a saúde um direito de todos e um dever do Estado. O Estado, que tem falhado na sua função de proteger as pessoas, deve aplicar políticas públicas voltadas emergencialmente para a área da saúde, promovendo o mínimo necessário de dignidade habitacional, saneamento básico, acesso à água potável e cumprir seu Plano de Enfrentamento à Microcefalia, principalmente nas regiões mais pobres.
Este plano foi lançado pelo Governo Federal em dezembro de 2015, com o objetivo de orientar os profissionais da atenção à saúde, na rede básica e especializada, no trabalho de estimulação precoce às crianças de zero a 3 anos de idade com microcefalia, nas ações de acompanhamento e intervenção clínico-terapêutica multiprofissional com bebês de alto risco e com crianças pequenas acometidas por patologias orgânicas, buscando o melhor desenvolvimento possível.
O Brasil apresenta realidades e disponibilizações desiguais. Falta água potável e saneamento básico para uma parcela da população, mas apesar da situação envolver mais os grupos empobrecidos, a doença pode acontecer em todos os estratos populacionais, com as mesmas consequências negativas para as pessoas e suas famílias.
Blog Era Uma Vez: Como o governo poderia amparar as famílias?
A questão é multifatorial e o Brasil não está preparado para enfrentar o potencial epidêmico explosivo que traz à tona a vulnerabilidade das pessoas às doenças transmissíveis e não controladas, assim como as consequências que afetam as famílias e a sociedade. Em países desenvolvidos situações semelhantes dificilmente ocorrem. No caso das mães que pararam de trabalhar para cuidar dos filhos diagnosticados com microcefalia, o governo Federal anunciou uma bolsa correspondente a um salário mínimo mensal, para as famílias que tenham renda de até R$ 220,00 per capita. Este benefício não remediará os danos psicológicos, financeiros e de qualidade de vida, mas deveria se estender a todos que terão de arcar com as despesas decorrentes de cuidados especiais, na medicina suplementar, como neurologista, oftalmologista, otorrinolaringologista, terapia ocupacional, fisioterapia, fonoaudiologia, dentista, psicólogo, entre outros, além dos medicamentos recomendados não disponibilizados pela rede pública de assistência à saúde.
Blog Era Uma Vez: Como o Brasil pode preservar os direitos dessa geração no futuro?
Para alcançar a complexidade da situação é imprescindível uma abordagem interdisciplinar e intersetorial, trabalhando-se em rede, no intuito da integralidade. Porém, a efetividade da rede depende da capacitação sistemática e do preparo dos serviços e profissionais, resultando em facilidades para as famílias de portadores de necessidades especiais, no acolhimento e na assistência em saúde, educação e na vida. Este caminho é longo e tortuoso, no contexto socioeconômico, ambiental e cultural, exigindo trabalhos direcionados e adequados na diversidade, para a atenção integral às pessoas com necessidades especiais.
Bruna Ribeiro
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