Feminismo didático parte 1 — Marcela, por Ana Paula Lisboa

27 de abril, 2016

(O Globo, 27/04/2016) A gente vive a vida como desejar, sendo segunda dama ou sendo presidenta

No ônibus:

— Nossa, você é gostosa!

[silêncio]

— Nossa, eu queria te levar pra minha casa.

[silêncio]

— Nossa, você é gostosa mesmo.

— Ok, eu já escutei, você já pode calar a boca!!!

— Mas eu só estou te elogiando…

— Não, você está me assediando, eu não sou obrigada a ouvir seus “elogios”.

[silêncio]

— Você é esse lance de feminista?

Em 2013, o projeto Think Olga criou a campanha “Chega de fiu-fiu”, simplesmente para trazer à tona diálogos como os descritos a cima. São situações que todas as mulheres passam na vida, às vezes ainda na infância, como ratificou outra campanha: “Meu primeiro assédio”. Pode parecer estranho, mas muita gente não sabe que não é porque estamos em um espaço público — rua, trem, metrô, barco, bar, esquina — que nosso corpo se torna automaticamente público também.

A amiga do diálogo ainda teve a “ousadia” de responder, mas números da mesma campanha mostram que, apesar da vontade, poucas mulheres respondem, na maioria das vezes por medo de uma agressão ainda maior, verbal e até física.

Entre tantos incômodos com o texto da Fernanda Torres escrito em fevereiro no blog “Agora é que são elas”, — sim, vamos voltar a esse texto! —, o maior é quando ela descreve as idas para a escola com a babá mulata Irene, e de como ouvia os homens “uivando, ganindo, gemendo, nas obras, nas ruas”. Eu sei como é: parei de chupar picolé na saída da escola quando tinha uns 11 anos. Parei porque nesse tempo eu achava que a culpa era minha, e sabe quem me explicou calmamente que não era? O feminismo.

Não foi o “igualitarismo dos gêneros”, foi o feminismo. Acho engraçadíssimo o medo que certas pessoas têm dessa palavra. Parece que a gente está aqui de sovaco e virilha peludos, armadas para a revolução que quer tomar o lugar dos omi. Calma, seja menas.

Eu descobri que o feminismo é o movimento mais didático que existe no mundo, simplesmente porque existem mulheres que têm a paciência de explicar para outras, e para homens, que a nossa missão na Terra não é servir ao sexo oposto. E elas são tão maravilhosas (foi difícil encontrar um adjetivo que não fosse um palavrão) que fazem isso em forma de música, blog, dança, grafite, ilustração, escrita, grupo de oração, design, marca de roupa, grupo no WhatsApp, oficina, vídeo, revista digital, coluna em jornal…

A primeira lição na linha meu corpo, minhas regras quem me deu foi meu pai. Um domingo, indo pra igreja, perguntei se ele achava que minha saia estava curta, ele respondeu que se eu não pudesse entrar na igreja com a roupa que eu quisesse, então não devia ir à igreja. Meu pai era quem me liberava para dormir na casa dos namorados, e os namorados para dormir lá em casa. Ele me ensinou a fazer arroz, a limpar a casa e ainda lavava minha roupa na minha fase adolescente mais louca em que eu não tinha tempo nem pra respirar. Fazia de tudo não como favor, mas como obrigação de quem entende seus deveres de homem enquanto minha mãe trabalhava.

Faz uma semana eu estou celebrando os corpos femininos junto às minas. Tudo começou quando a revista que-não-se-deve-nomear publicou a dita matéria, com o dito título, com a dita esposa do dito vice-presidente. A revista que-não-se-deve-nomear não é boba, quis polemizar, usou um tema que sabia que seria nutrição pra controvérsia. O que o tornaria ainda mais divulgado. Conseguiu.

A didática do feminismo já deixou claro que Marcela não é o problema. Pelo contrário, uma mulher que foi Miss, casou cedo, vive para cuidar do filho, da casa e do marido e se orgulha de contar tudo isso para uma revista é um grande ato feminista. Toda a questão está em torno de quem não se encaixa no “padrão Marcela” aceito na política, na sala de aula, na rua, em casa, no trabalho, nas fotos de rede social, porque são essas as minas assediadas, estupradas, ridicularizadas, isoladas, perseguidas. E, na real, a gente sabe bem que a misoginia (ódio, desprezo ou repulsa ao gênero feminino) era direcionada. Mas mexeu com uma, mexeu com todas, e é por isso que centenas de mulheres ocuparam a timeline nos últimos dias. Não foi a esquerda feminista caviar, como escreveu ofensivamente um colunista que-também-não-se-deve-nomear. Até as minas que não estão diretamente no rolê (luta!) entendem que ser o que se é é um direito conquistado e precisa ser preservado. Em cada foto, um pouco de cada uma de nós, seja em casa, no banheiro da balada, no trabalho, cuidando dos filhos, na igreja, no carnaval.

A gente vive a vida como desejar, sendo segunda dama, e principalmente sendo presidenta.

Obrigada. De nada.

Acesse o PDF: Feminismo didático parte 1 — Marcela, por Ana Paula Lisboa (O Globo, 27/04/2016)

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