(Dimalice Nunes*/Agência Patrícia Galvão, 02/05/2016) Dentre tantas informações desencontradas que ainda marcam as narrativas sobre a epidemia do zika vírus no Brasil uma é fato: mulheres jovens, pobres e negras constituem a parcela mais vulnerável desta crise.
Pesquisa da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude de Pernambuco apurou que 77,7% das mulheres que deram à luz a bebês com a síndrome congênita do zika no Estado estão abaixo da linha da pobreza. Junta-se a essa informação o dado do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) que aponta que 73,7% das mulheres negras brasileiras são pobres. Também se sabe que é nas periferias das grandes cidades – com toda a precariedade de saneamento básico, coleta de lixo e fornecimento de água – que a infestação do mosquito transmissor do vírus é endêmica.
A despeito disso, as mulheres negras seguem retratadas à margem, como afirma Jurema Werneck, médica, doutora em comunicação e coordenadora da ONG Criola. “A epidemia de zika adoece qualquer pessoa, mas isso em tese. Na prática, atinge de forma mais impactante as mulheres que experimentam as maiores vulnerabilidades, que são as jovens negras. E boa parte das narrativas, seja na mídia, seja na saúde, não dá visibilidade a esse dado.”
Fernanda Lopes, representante do Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil, compara o momento atual ao do fim da década de 80, quando surgiu a Aids, e salienta a diferença na ação do Estado e na visibilidade da população atingida. Para ela, respostas rápidas foram dadas naquele momento justamente porque os primeiros atingidos eram homens, brancos e com alta escolaridade. “Este é o momento de fazer a diferença e trazer essas vozes para o centro da cena política.”
A representante do UNFPA ressalta a necessidade de trazer as mulheres negras para o centro do debate, ainda que tardiamente, uma vez que a própria epidemia é produto deste silenciamento e negação de direitos. “O que vemos agora é um resultado, porque o direito dessas mulheres é subestimado e subvalorizado desde sempre. Por isso é tão importante dar voz a essas pessoas, para surgirem as possibilidades de resposta”, afirma. A avaliação das especialistas é que a partir da fala dessas mulheres é que serão encontradas as respostas efetivas para a epidemia: o direito a cidades saudáveis, coleta de lixo, água encanada, entre outros.
Racismo institucional leva à violação de direitos e culpabilização da mulher
Embora haja pelo menos um dado estadual sobre a condição socioeconômica dessas mulheres, não é possível saber quantas delas são negras. As fichas de notificação do Ministério da Saúde sequer recolhem o dado raça/cor das vítimas. Ainda que existam determinações do Sistema Único de Saúde (SUS) que obriguem a compilação destes dados, dentro da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, o protocolo específico de enfrentamento da epidemia de zika ignora a necessidade deste detalhamento nas notificações.
A falta de dados precisos sobre como as mulheres negras são afetadas pela epidemia escancara o racismo institucional que permeia suas vidas. Mas além de ignorar as necessidades específicas de ação neste grupo social, o poder público ainda sugere ações que ignoram a realidade em que vive essa população vulnerável. Exemplo disso é a comunicação oficial, que no auge da epidemia orientava mulheres grávidas a usarem repelentes e roupas compridas, ignorando os custos do produto e a realidade do clima onde elas vivem.
“O racismo institucional faz com que, por exemplo, o sistema de saúde pense uma ação, mas não pense que as pessoas mais vulneráveis precisam de uma resposta inicial urgente e mais contundente. É impossível dizer para uma mulher negra, favelada, desempregada, cuidando de várias pessoas na sua família, para passar repelente, que custa R$ 25 ou mais. Impossível convencer uma mulher jovem, na periferia do Recife, a usar burca nas ruas da favela. Isso é um absurdo. Este raciocínio fala para outra realidade, que não é a realidade dessas pessoas, que são pessoas negras que merecem atenção”, critica Jurema.
Além do racismo institucional impregnado na comunicação e nas ações públicas de combate à epidemia, há uma recorrente culpabilização da mulher que está exposta aos riscos de contrair a zika, uma vez que toda a estratégia coloca nas mãos das mulheres, e não do poder público, a responsabilidade pela exterminação do mosquito e o controle do contágio: da limpeza dos vasos de plantas e quintais, ao uso de repelentes e roupas compridas. Para Jurema, o subtexto disso é: se a epidemia está acontecendo é porque a mulher não fez a faxina. Isso é culpabilização. “Se a mulher adoeceu, ela não fez a faxina. Se o bebê dela nasceu com microcefalia, ela não fez a faxina. Isso é cruel, é irresponsável, é leviano e racista.”
Isabel Clavelin, doutoranda na Universidade de Brasília e assessora de comunicação da ONU Mulheres, afirma que falta ainda uma real articulação entre a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Segundo ela, em suas pesquisas de campo, pouco ou nada tem se falado dessas políticas nas ações de enfrentamento da epidemia e na assistência das mulheres grávidas ou mães de bebês com a síndrome congênita.
A pesquisadora ressalta ainda que, mais uma vez, o silenciamento dessas vozes aponta para demanda urgente pela garantia do direito básico à comunicação, para que as mulheres possam ter meios de apresentar sua perspectiva e estar em primeiro plano na epidemia de zika vírus.
O que fazer?
A primeira ação para trazer as mulheres negras para o debate é dar voz a elas, que precisam ser ouvidas pela mídia e pelo poder público. “Não são todas as mulheres grávidas nem toda a população que está experimentando a maior parte da tragédia”, afirma Jurema Werneck. Para a médica, é fundamental reivindicar que as mulheres que são de fato mais vulneráveis possam vocalizar, sendo as interlocutoras da mídia e do sistema de saúde para falar quais são as suas necessidades em relação à epidemia.
Jurema Werneck afirma ainda que mídia e poder público precisam sair dos números e ir para a vida real, para rua, pois é lá que estão as mulheres angustiadas com a doença ou com a possibilidade de contraí-la. Esse diálogo, porém, não deve ser para estigmatizá-las ainda mais e retratá-las como sempre, como quem sofre as desgraças. “É preciso buscar essa mulher negra jovem para dizer como ela pensa essa epidemia e como pensa os caminhos para sua própria proteção. A gente não tem que esperar a angústia e a tragédia, a gente pode chegar antes e ajudar a construir uma resposta mais eficiente. Tem que ir onde ela está.” O Brasil tem 60 milhões de mulheres negras. É uma Colômbia inteira ou 27 vezes a população da Jamaica, compara Jurema. “Não é pouco para ser silenciado”, finaliza.
*Edição: Marina Pita. Arte: Tainah Fernandes