(Folha de S. Paulo, 14/05/2016) Lutar contra a desigualdade vai além de dar dinheiro aos mais pobres. É preciso enfrentar preconceitos e narrativas culturais arraigadas que inibem o avanço de grupos marginalizados pela sociedade.
A opinião é de Darren Walker, 56, presidente da Fundação Ford, uma das principais instituições filantrópicas do mundo.
A organização possui um fundo patrimonial de US$ 12 bilhões. Os rendimentos desses recursos, investidos, permitem a ela realizar doações e investimentos sociais em diferentes países – ela possui escritório no Brasil desde 1962.
Leia abaixo trechos de entrevista que Walker concedeu à Folha, em São Paulo.
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Folha – A Fundação Ford decidiu colocar a desigualdade como centro de suas ações. Por quê?
Darren Walker – A escolha foi o resultado de um período extenso de observação dos principais desafios atuais.
Identificamos três áreas principais: mudanças climáticas, aumento da insegurança e crescimento da desigualdade.
Consideramos então quais ativos e capacidades temos para lidar com esses desafios. Vimos que o combate a desigualdade era onde seríamos mais capazes de agir de forma significativa.
Também levamos em conta que a desigualdade é algo que está presente em todas as partes do globo. Enquanto a insegurança está concentrada em locais como o Oriente Médio, e talvez não seja uma questão tão crítica em toda a América Latina, por exemplo, a desigualdade é um problema que afeta a todos, aos EUA, ao Brasil, a Índia e a China.
A riqueza das 62 pessoas mais ricos do mundo é igual ao patrimônio da metade mais pobre da população mundial. Por que estamos nesta situação e o que fazer?
Não sou um economista, mas penso que, se procurarmos especialistas, o que vamos ouvir é que os motivos da desigualdade são técnicos, tais como a globalização, a economia do conhecimento e a automação.
Mas eu e meus colegas pensamos que existem outros geradores de desigualdade. E eles muitas vezes são ignorados, apesar de sua grande importância.
Existem narrativas culturais que reproduzem e justificam a desigualdade. Na Índia, por exemplo, é aceitável que as pessoas falem de castas inferiores, que vivem vidas de privação.
Devido a cultura dos EUA, mais homens negros são presos do que brancos, por causa das narrativas da sociedade norte-americana que dizem que homens negros cometem mais crimes.
Há narrativas sobre mulheres, que elas não podem subir ao topo no mundo corporativo ou que elas devem ter uma vida de exclusão.
Essas narrativas estão conectadas a outro gerador de desigualdade, que é o preconceito. Juntos, elas levam a criação de estruturas econômicas que impedem o crescimento desses grupos.
Essa busca por mudança de valores pode tocar em pontos sensíveis. No Brasil, por exemplo, há críticas à fundação por atuar junto a organizações que defendem o direito ao aborto. Como lidam com estas questões?
Em primeiro lugar, a fundação está para servir às aspirações da população brasileira. Não temos uma agenda. Ela é criada pelas instituições, líderes e organizações da sociedade civil que apoiamos.
Nosso trabalho é simplesmente apoiar as instituições e ideias que fortalecem a participação democrática e os desejos de todos os brasileiros.
Apoiamos aqueles que, na maior parte das vezes, têm suas vozes deixadas de lado, aqueles que estão fora da mesa em que são discutidas as grandes decisões e deveriam estar nessa mesa.
Qual sua opinião sobre a cultura de doações no Brasil?
Há uma comunidade emergente de doadores individuais, seguindo tradição que vem de John D. Rockefeller [1839-1937]. Também há práticas corporativas muito progressistas, de empresas que estão fazendo trabalho social muito importante para fazer coisas como aumentar o nível de educação, reduzir a pobreza.
Existe uma grande oportunidade aqui. Na última década, houve aumento da riqueza no Brasil e surgiram mais oportunidades de se fazer filantropia e construir uma cultura de doações.
No país, reclama-se que as doações têm poucos incentivos fiscais. Eles são mesmo necessários?
Se você falar com a maior parte dos filantropos norte-americanos, eles dirão que a estrutura fiscal incentiva as doações, que o fato de atividades de caridade serem privilegiadas ajuda o sistema.
Acredito que esses incentivos não são a única razão para a filantropia. As pessoas também são guiadas pelo impulso de melhorar sua comunidade e a vida de outros cidadãos. Mas penso que, certamente, os incentivos são importantes.
Como define o papel do governo e o do setor privado na busca por uma sociedade melhor?
É preciso que haja uma parceria. É necessário que o setor privado se engaje, porque ele é inovador e, muitas vezes, está preparado para assumir riscos.
Mas há coisas que realmente requerem colaboração, devido a sua necessidade de escala e a sua complexidade. Penso que precisamos de um sistema que seja um círculo virtuoso, contendo o setor público, o setor privado, a filantropia e a sociedade civil.
E deve-se tentar influenciar governos?
Penso que é possível. Nos países em que estamos no mundo, o governo é um parceiro.
Sou graduado graças a um programa que foi criado para ajudar a educar os mais pobres nos anos 1960 pela Fundação Ford. Ela atuou em parceria com o governo pois a ideia era que, quando a eficácia do programa fosse provada, ele fosse expandido para todo os EUA.
Estamos em uma posição de testar programas, de aceitar o alto risco envolvido neles e dispostos a enfrentar a necessidade de investimento inicial. Nos vemos em alguns casos como a área de pesquisa e desenvolvimento do governo e da sociedade.
Podemos confiar no setor privado, quando sabemos que há trilhões de dólares escondidos em paraísos fiscais, empresas que usam trabalho análogo à escravidão em suas cadeias produtivas e corrupção abundante?
Penso que o importante é criar uma democracia que seja resiliente e efetiva. É preciso construir uma sociedade civil vibrante, durável, respeitada, que seja capaz de chamar a atenção a injustiça onde quer que ela esteja.
Pode ser na política fiscal, no policiamento de áreas onde vivem afro-brasileiros ou no sistema de justiça.
Se você tem uma sociedade civil forte, todos terão uma voz para assegurar a justiça.
Quais as perspectivas futuras para doações da fundação?
Vamos fazer doações em duas áreas novas, que são muito relevantes para o Brasil. Uma delas é a dos direitos digitais, em que o país está na vanguarda.
Outra área é o que chamamos de investimento de impacto, ou seja, aqueles que buscam tanto retornos financeiros como também retorno social. Isso pode significar investir em energias limpas ou em uma unidade de saúde que atende pessoas com baixa renda.
Não é uma doação, é realmente um investimento, mas você entra no negócio entendendo qual o benefício social e qual o retorno financeiro que será gerado pela companhia. O Brasil tem um cenário fantástico para isso.
Filipe Oliveira
Acesse o PDF: Reduzir desigualdade vai além de dar dinheiro a pobres, diz Fundação Ford (Folha de S. Paulo, 14/05/2016)