Trip, 16/05/2016) Criolo relançou “Ainda há tempo”, seu primeiro disco após dez anos. Ele se preocupou em alterar letras que diminuíam a imagem da mulher e dedica o trabalho aos secundaristas
Quando lançou seu primeiro álbum, em 2006, Criolo deu voz às quebradas do Grajaú, extremo sul de São Paulo. Ainda há tempo é um dos discos mais aclamados pelo seu público até hoje, mesmo que algumas letras tenham gerado adversidade por conter frases de cunho machista. Dez anos depois, o rapper diz que abriu os olhos e mostra a nova versão daquelas canções que nem ele se sente mais a vontade para cantar, como Vasilhame e Breáco.
A ideia inicial era fazer um show comemorativo para que a data não passasse batido. Mas, como a trilha original das músicas tinha sido perdida em estúdio, ele resolveu regravar algumas das faixas e lançar uma nova versão do álbum com direção musical de Daniel Ganjaman, incluindo as letras alteradas.
Em tempos de crise política e impeachment, Criolo conta à Trip que acredita na educação para conseguir uma transformação real na sociedade e faz questão de lembrar a luta dos secundaristas: “Subestimaram esses jovens, essa foi a brecha. Não se imaginava que os estudantes iriam se organizar de um modo tão forte”.
Você modificou algumas letras na regravação. Em Vasilhame, trocou “traveco” por “universo” na frase “O universo está aí, ó”. Era ignorância minha, né? Por falta de conhecimento da minha parte, usei em algumas músicas esses jargões populares, alguns apelidos e palavras que não fazem sentido algum e só magoam as pessoas. Eu mesmo me magoei com isso depois que refleti. Na época nem me tocava, mesmo sendo preocupado com várias questões sociais. Agradeço por ter tido a oportunidade de me rever e corrigir isso com a regravação, nos shows eu já cantava a nova versão há três anos.
Quando você se tocou de que isso não era legal? Faz uns três anos e meio que eu comecei a perceber esses pontos e a me questionar sobre o que eu estava reforçando com a palavra traveco, por exemplo. Tá marginalizando, colocando um monte de coisa negativa aí. Para! O que eu tô reforçando com isso? Tem várias outras coisas no decorrer do disco que eu já mudei, no Nó na orelha também. São coisas que demonizam a imagem da mulher e jamais quis fazer isso.
Você acha que nesse momento se tornou mais politizado sobre essas questões? Eu cresci dentro de um ambiente em que a minha mãe sempre levou a luz do conhecimento. Não é questão de ser politizado ou não, mas de se tocar dessas coisas que passam batido porque estão no dia a dia. Quando você age dessa maneira, não vê nenhum mal. Mas tudo tem um por que, enquanto eu estou ridicularizando você, perco a oportunidade de falar algo positivo. Nisso, a gente vai se enfraquecendo. Mesmo se pensar que é na brincadeira… Eu tenho a felicidade de ter ao meu lado pessoas que me ensinam muito.
Pode contar alguma situação? Vi o quanto era contundente “as vadias quer mas nunca vão subir” quando uma jovem que estava em um show me perguntou muito educadamente “Criolo, tem como você mudar isso?”. Ela foi de uma humildade. Não me agrediu, me educou. Nisso, conversei com amigas que são líderes de movimento feministas e elas me ajudaram a trocar pela palavra “vazia”, as pessoas vazias, as que não tem algo positivo em seu coração. Me deu uma luz. Não custa nada educar, estamos aqui pra aprender também.
Você acha que é importante chegar desse jeito, mais na boa, pra educar? Eu tive essa sorte. Mas não sei, poderia ser alguém mais abrupto que tivesse me abordado de outra forma. Eu não vou tirar a importância do sentimento das pessoas, porque elas se sentem magoadas e atingidas. Tá me educando de todo o jeito. O importante é saber que, se alguém se expressou, é porque ela achou que minimamente valia a pena.
As letras do Ainda há tempo são muito pesadas. Você acha que a realidade que está impressa nelas ainda se faz atual? São coisas que estão presentes, latentes e pulsantes. Ainda é um país extremamente preconceituoso, xenófobo, racista e machista.
E o rap é uma maneira de mudar isso. O rap é muito forte. Me ajudou a ver que eu era alguém no mundo e que eu conseguia me expressar de algum jeito. Isso com onze ou doze anos de idade, o que é muito importante para um adolescente. Quando eu canto “eles querem que você desista, mas jamais se dê por vencido”, é também pra enxergar que a maioria de nós quer uma mudança no mundo e a gente não pode se desconectar. Enquanto os caras jogam um monte de coisa para vendar nossos olhos, eles vão fazendo o rolê deles. Entende?
Pensando na polarização política, acha que realmente querem que a gente se desconecte? Irmã, isso é só detalhe. É a pontinha do iceberg. As pessoas estão tretando pela cor da roupa, mas na favela as pessoas são assassinadas pela cor da pele. Ninguém fala disso. Ninguém fala! A gente só consegue essa conexão com a educação e um ambiente para que as crianças possam crescer saudáveis, entendendo a sua construção de ideias. Para isso, elas precisam estar bem alimentadas, se sentirem acolhidas.
O caminho é a educação? Não existe outro, isso nem se questiona. Existem mil outras formas, mas a base de tudo é a educação. Ser professor é uma das coisas mais importantes do planeta, e hoje nos temos um professor que é ridicularizado todos os dias, que é bombardeado por falta de estrutura. Também existe um processo de criminalização e naturalização da violência contra os alunos.
Para fechar, tem uma importância política nesse relançamento? Tudo aquilo que é pra construir algo, naturalmente é político. Nós somos seres políticos. Não podemos confundir o ser político com o momento político e a politicagem. A partir do momento que somos seres que nos comunicamos e nos expressamos e através disso temos construções, essa política já está sendo feita. No dia a dia, na vivência. Quero dedicar a todos os secundaristas e professores, que estão lá no Rio de Janeiro, no Ceará, em São Paulo e em vários lugares do Brasil. Valorização imediata, respeito agora para o nosso professor e nossos alunos!
Camila Eiroa
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