(Nexo, 07/06/2016) O passado nos legou uma marca pesada que nada deve ao descuido ou à circunstância. No entanto, é possível reverter essa situação e enfrentar a forma assimétrica e violenta como se estabeleceram e estabelecem as relações de sexo no Brasil
No primeiro documento oficial do Brasil – a bela carta que Pero Vaz de Caminha endereçou ao rei de Portugal entre 28 de abril e 1 de maio de 1500 – o escrivão da nau de Cabral confessava, entre encantado e preocupado, que todos nessa terra andavam “nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”. Como se pode notar, a beleza e a falta de roupa dos nativos, e sobretudo das nativas, chamou logo a atenção dos primeiros colonizadores.
A primeira ilustração que se conhece sobre a América, datada do ano de 1580, também tratou de imaginar um “amistoso” encontro entre o Velho e o Novo Mundo. Não por coincidência, o europeu é representado como um homem que domina uma série de símbolos associados à civilização: o astrolábio, as caravelas, os sapatos e o excesso de roupas. América, por sua vez, surge como uma mulher, praticamente nua e deitada numa rede, mostrando que o Novo Mundo estava preguiçosa e languidamente aguardando a chegada do Velho. As associações com a barbárie são igualmente evidentes: a falta de vestimentas a cobrir seu corpo, os pés descalços e sobretudo as cenas de canibalismo que ocorrem ao fundo. Mas há outro detalhe a anotar: ela oferece seus braços em direção ao conquistador, como se desejasse e o convidasse para a “invasão”.
A antropóloga Anne McClintock, em seu livro “Couro Imperial”, aposta que essa ilustração testemunha o primeiro grande estupro da história americana. Ou seja, a nudez da “moça” e seu “oferecimento” justificariam a colonização violenta que estava para começar e que mudaria para sempre a feição do nosso continente. Não pretendo discutir aqui quem devorou quem nessa história. Afinal, os colonizadores chamaram de “canibalismo” (uma prática alimentar) o que era na verdade “antropofagia”; uma forma de associação entre diferentes nações conectadas em redes, as quais, com certeza, não fariam parte da divisão territorial que os europeus inventariam para o continente.
Também não quero propor uma linha do tempo contínua, que acumula causas com consequências fáceis. Mas gostaria, sim, de alinhavar com quantas histórias se faz uma “cultura do estupro” no Brasil. Como há quem diga que não entende a expressão, melhor começar explicando. Cultura pode ser definida como uma segunda natureza. Ela gruda em nós feito tatuagem, de maneira que esquecemos como ela nada tem de “natural”; é sempre efeito de muita construção política, social e humana. Falta porém tratar das bases dessa naturalização do estupro, entendida perversamente como um legado “previsível” da civilização.
O início da nossa história está vinculado a um projeto colonial, cujo funcionamento pautou-se no uso alargado de mão de obra escrava e compulsória: indígena e/ou africana. Com isso, o poder concentrou-se nas mãos de poucos e a desigualdade tornou-se marca essencial: de raça, de etnia, de religião, e, também, de gênero e de sexualidade. Em primeiro lugar, a colonização foi feita basicamente por homens. Os colonizadores chegavam solteiros ou sem suas famílias, com o propósito de domar essa imensa terra desconhecida. Em segundo, a população escravizada apresentava também um grande desequilíbrio sexual. Os homens, mais valorizados para o trabalho árduo no campo, correspondiam a 65% das importações feitas pelo tráfico negreiro. Já os parcos 35% compostos pela população feminina explicam o crescimento negativo verificado nas primeiras gerações de africanos vivendo no Brasil.
Tal desproporção sexual traria consequências ainda mais cruéis por conta da vigência do sistema escravocrata, que pressupõe a posse de uma pessoa por outra. Com o enraizamento do cativeiro, uma linguagem pautada na banalização da diferença e da hierarquia passou a fazer parte do nosso cotidiano e foi assim “naturalizada”. Escravos podiam ser comprados, vendidos, leiloados, penhorados, seviciados. Senhores mandavam e tinham o controle da vida e até mesmo da morte. Já o corpo feminino, mais escasso nessas paragens, entrou logo nesse “comércio de almas”. Mulheres indígenas e negras, além de serem consideradas produtoras de riqueza – e utilizadas na agricultura, na casa-grande e na mineração – funcionavam como instrumento de prazer e gozo por parte de seus proprietários.
Assim, se não há porque negar a miscigenação gerada pela colonização no Brasil, porém, e diferente do que afirma o senso comum, esse foi também um mundo condicionado pela divisão. Como dizia o provérbio popular, as poucas “mulheres brancas eram para casar; as negras para trabalhar e as mulatas para fornicar”. Gilberto Freyre, que definiu nossa sociedade como um “equilíbrio de contrastes”, nunca negou a violência do sistema como um todo, e aquela da sexualidade exercida pelos senhores na intimidade da alcova escravista.
O passado nos legou, pois, uma marca pesada que nada deve ao descuido ou à circunstância. No entanto, como não estamos lidando com dados da biologia e da natureza, mas com padrões humanos, é possível reverter essa situação e enfrentar a forma assimétrica e violenta como se estabeleceram e estabelecem as relações de sexo no Brasil. Esse medo do assédio não é cativo dos tempos do escravismo e muito menos notificação acidental ou infundada. Segundo dados acachapantes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 88% das vítimas de assédio são do sexo feminino; 70% são crianças e adolescentes; 46% não têm ensino fundamental completo, 51% são de cor parda ou preta. Além do mais, 24% das notificações apontam nos agressores o próprio pai ou padrasto, 32% dos casos são praticados por amigos ou conhecidos da vítima; 15% dos atos são cometidos por duas ou mais pessoas. Há também dia da semana e horário para a violência: estupros ocorrem mais às segundas; crianças são violentadas sobretudo das 12 às 24 horas; adultos das 18 horas às 6 da manhã.
É certo que esse é um problema que não aflige apenas aos brasileiros. Nesse quesito estamos atrás de países como Costa Rica, Guiana, Peru, Jamaica, Bélgica e EUA. Mas cada país guarda sua história e a nossa secreta escalas alarmantes que dizem respeito à falta de confiança na polícia, ao medo de represálias e à pouca proteção ao cidadão. A consequência imediata da nossa fragilidade institucional é que apenas 35% das vítimas apresentam queixa às autoridades competentes, o que faz com que continuemos presos a essa escandalosa subnotificação.
Não quero me esconder nos dados frios das estatísticas, pois cada exemplo esconde suas próprias tragédias, profundas. Essas são e serão vidas marcadas pelo trauma, pela vergonha do silêncio e pela culpa de saberem que o crime do estupro foi muitas vezes praticado por pessoas próximas, amigos, parentes e cidadãos “comuns”, daqueles que vemos passar no dia a dia a caminho do trabalho. O resultado do descaso e da disseminação é não só a “cultura do estupro”, como uma “cultura do medo”, com 67,1% das mulheres residentes nas grandes cidades afirmando terem receio de sair de casa e sofrer uma agressão sexual.
O termo “cultura do estupro” foi usado pela primeira vez nos anos 1970, por ativistas da assim chamada segunda onda do feminismo. O objetivo era mostrar como esse é um crime hediondo, diante do qual a sociedade deve responder com tolerância zero. A luta por direitos civis deu legitimidade a bandeiras políticas que garantiram a diferença social, sem que fossem perdidos os valores da igualdade. Seria fácil, pois, condenar a sociedade patriarcal e o sistema escravocrata e assim encaixar um “viveram felizes para sempre”. No entanto, mais do que apenas condenar o passado é importante atribuir ao presente o que é da nossa inteira responsabilidade. Nesse caso, a princesa não casa com o príncipe. Muito pelo contrário.