(CartaCapital, 16/06/2016) Na semana em que ataque homofóbico mata mais de 50 em Orlando (USA), analisamos o papel da mídia no silenciamento da diversidade
“Odeio história de bicha. Pode existir, pode aceitar, mas não pode transformar isso em aula para as crianças. Tenho dez netos, quatro bisnetos e tenho um puta orgulho porque são tudo macho pra cacete”. A afirmação foi feita por Benedito Ruy Barbosa, supervisor da novela “Velho Chico”, no dia 9 de março deste ano.
Apesar de a baixa audiência do programa preocupar a TV Globo, a ideia de que “histórias de bicha” não merecem ser contadas, vinda do responsável pela peça de teledramaturgia do horário nobre da maior emissora de televisão da América Latina, é um bom termômetro da atuação midiática, no mínimo, cúmplice da homofobia.
A mídia reforça a homofobia negando representatividade à população LGBT. Por que, por exemplo, que a pessoa chamada para opinar sobre o massacre de Orlando foi o Papa Francisco e não uma pessoa sobrevivente de um ataque homofóbico?
Parando pra pensar: quem, no Brasil, deveria ter ocupado a manchete no lugar do Papa para falar sobre este acontecimento? Difícil ir até o segundo item da lista.
Ela pararia no deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ). Temos uma ou outra figura pública abertamente homossexual, mas não temos apresentadores de TV ou colunistas de jornal.
A homossexualidade aparece na TV na hora do “vai-ter-beijo-gay-ou-não-vai” nas novelas, mas se são verdadeiras as pesquisas que afirmam que uma em cada dez pessoas é homossexual, a representatividade LGBT é realmente pífia.
Então ao mesmo tempo em que o Papa só deveria ter espaço nas manchetes desse caso se fosse para dizer “Desculpe, eu e a Igreja Católica somos cúmplices indiretos dessa chacina”, é difícil citar quem deveria estar falando no lugar dele.
Nos Estados Unidos, a atriz Ellen DeGeneres se assumiu homossexual publicamente ainda na década de 1990, durante um seriado de televisão que levava seu nome. E este foi um dos acontecimentos mais importantes em termos de representatividade LGBT naquele país.
Hoje, DeGeneres é uma mulher abertamente lésbica que tem o próprio talk show, apresentou a cerimônia de entrega do Oscar duas vezes e é uma das figuras mais populares da TV nos EUA.
Traçando um paralelo com o Brasil, valeria questionar, quem atualmente corresponderia a este perfil? Aqui, Xuxa Meneghel repete a receita apenas no corte de cabelo e no figurino.
Na TV brasileira, a única lésbica assumida é a jornalista Bárbara Gância. Entre artistas e celebres podemos citar poucos casais homossexuais assumidos como Daniela Mercury e sua companheira, a jornalista Malu Verçosa, e o estilista Carlos Tufvesson e o marido André Piva.
Muitos outros, embora sejam conhecidas suas histórias e parcerias, preferem se manter discretos quanto à sua orientação sexual. Ainda que tal discrição seja uma opção pessoal, vale questionar se ela não estaria sendo mantida pelo receio de sofrer preconceitos dentro do próprio sistema de mídia, com a perda de legitimidade ou de papéis na ficção, por exemplo.
Pessoas LGBT crescem sem referência e sem saber quem são. Em casa e na rua, sofrem violência porque homossexuais não são “gente como a gente”.
São Seu Peru, Vera Verão, o personagem “meio homem, meio mulher” de um quadro do antigo Zorra Total, o gay que dá em cima de todos os homens nas pegadinhas do João Kleber, o casal de lésbicas assassinado no início da novela Torre de Babel.
Vivemos uma realidade em que “história de bicha” não merece ser contada, não gera uma grande comoção, um boicote de atrizes e atores bissexuais, lésbicas e gays que poderia deixar o set de filmagem vazio. A falta de representatividade é tamanha que uma mobilização nesse sentido sequer é cogitada. E a mídia segue atuando como cúmplice da homofobia.
Mariana Amaral é redatora, lésbica e defende a visibilidade LGBT. Mônica Mourão é jornalista, defensora dos direitos humanos e coordenadora executiva do Intervozes.
Acesse no site de origem: A mídia brasileira é cúmplice de atitudes homofóbicas (CartaCapital, 16/06/2016)