(Folha de S.Paulo) “Caso Bolsonaro não justifica abrir precedente contra livre expressão do pensamento ou contra caráter inviolável do mandato parlamentar”, destaca o jornal Folha de S.Paulo em editorial publicado no âmbito do debate sobre as declarações polêmicas do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), consideradas racistas e homofóbicas.
“Não carece de um Tiririca a Câmara de Deputados que conta com profissional da derrisão do calibre de um Jair Bolsonaro (PP-RJ). Políticos de sua estatura são como o sal de uma democracia; no Brasil, atenuam de modo passageiro a sensaboria da cena parlamentar e se dissolvem na torrente da história sem deixar traços.
Bolsonaro só vale uma discussão que transcenda a triste figura. Sua incontinência verbal desencadeia um questionamento sobre instituto angular da liberdade política, a imunidade parlamentar assegurada no artigo 53 da Constituição: deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Apenas por isso precisa ser levada a sério.
Em entrevista a programa humorístico de TV, o deputado havia associado o namoro hipotético de um filho com mulher negra à falta de educação e à promiscuidade. Por cálculo ou cinismo, disse depois que pensara tratar-se de pergunta sobre homossexualidade.
Antes de mais nada, parece evidente que a manifestação se encontra coberta pelo espectro amplo da liberdade de opinião garantida pelo artigo constitucional sobre a inviolabilidade do mandato. A mesma Constituição abriga a liberdade de expressão como cláusula pétrea, de maneira lapidar, no artigo 5º: “É livre a manifestação do pensamento”. Bolsonaro disse o que pensa; alguns brasileiros pensam como ele e o elegeram. Foi uma declaração política.
Detestável, pelo que exala de preconceito, sua insinuação nem por isso se enquadra facilmente na legislação contra discriminação racial. Há quem considere adequado adotar uma noção relativa da imunidade parlamentar e atribuir-lhe o crime punível com detenção de um a três anos na lei nº 7.719/1989 (praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional).
Nunca foi trivial, contudo, definir o que constitui discriminação. No Estatuto da Igualdade Racial (lei nº 12.288/2010), ela figura como toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais. É transparente a intenção do legislador de punir atos concretos de discriminação, que tragam dano a pessoas reais, e não tanto convicções e preconceitos genéricos sobre diferenças raciais.
Repita-se: as palavras de Bolsonaro são lamentáveis. Bem faria a Câmara se alguma comissão de ética crível o submetesse a juízo político pela óbvia falta de decoro.
No mais, o caso se resume a um deputado que faz da estridência profissão e com isso adula uma franja retrógrada do eleitorado. Tudo insignificante demais para justificar qualquer precedente limitador da liberdade de opinião ou da inviolabilidade parlamentar conquistadas após a derrota do regime que o ex-militar enaltece.”
Acesse em pdf: Liberdade de agressão, editorial (Folha de S.Paulo – 05/04/2011)
Leia também carta enviada por leitor que critica o posicionamento do jornal
Bolsonaro
Sobre o editorial “Liberdade de agressão” (Opinião, ontem), que justifica a não punição do deputado Jair Bolsonaro devido à possibilidade de “abrir precedente contra livre expressão do pensamento”, devo dizer que discordo da opinião do jornal. Se a liberdade de expressão e de opinião já é limitada pelos institutos da injúria, da calúnia e da difamação -que, apesar de tipos penais, não são considerados precedentes contra a liberdade de expressão individual-, o objetivo fundamental da República, de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, também pode limitar a liberdade de expressão.
As devidas punições ao deputado não configurarão ameaças nem abrirão precedentes contra a liberdade de expressão, mas serão a forma que o poder público terá de comunicar um dos objetivos mais importantes de nossa República: a não discriminação.
Vitor Souza Lima Blotta, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (São Paulo, SP)