(Carta Capital, 15/07/2016) Relações que começam com brigas e terminam em agressão física vitimam cada vez mais brasileiras
G., de 37 anos, é casada há 19 com um homem que não reconhece mais. Distante do namorado carinhoso que a levou a sonhar com uma vida a dois, hoje ele mantém um tom cada vez mais agressivo, ofendendo-a com frequência e xingando-a de burra em público.
Ela bebe para aplacar a dor, mas sabe que, se nada mudar, nem suas duas filhas serão capazes de fazê-la suportar. F., de 45 anos, casada há 25, deu-se conta há pouco de que sofre de violência psicológica praticada pelo próprio companheiro.
Ela sente-se aprisionada, mas tem dificuldade em sair do casamento quando o marido mostra um lado carinhoso. Sente raiva por amar uma pessoa que não a merece. E sabe que, se não sair a tempo dessa relação abusiva, morrerá em breve, seja por assassinato, seja por suicídio.
Os depoimentos acima dizem respeito a casos reais de mulheres vítimas de violência, cada vez mais comum no Brasil. As exposições das vivências foram relatadas na plataforma de auxílio Minha Voz e são parte de uma realidade inquietante no Brasil.
Em 2015, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 recebeu de 76.651 relatos de violência contra a mulher, ou seja, uma média de 210 denúncias por dia. Desse total, 50,61% dizem respeito à violência física, cujos relatos cresceram 44,74%.
Tipo de agressão que acomete uma em cada três mulheres no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência física voltou às manchetes nas últimas semanas depois que a modelo e atriz Luiza Brunet veio a público denunciar ter sido agredida, com direito a costelas quebradas, pelo marido Lirio Parisotto, um dos 600 homens mais ricos do mundo, com uma fortuna superior a 1,2 bilhão de dólares, segundo a Forbes Brasil.
Além disso, administra um fundo de investimento, é dono da RBS Santa Catarina, da Videolar, o principal acionista das Centrais Elétricas de Santa Catarina (Celesc), e segundo suplente do senador Eduardo Braga (PMDB-AM).
Luiza, que no mês anterior postava nas redes sociais uma foto com a legenda: “A maquiagem esconde o hematoma da alma”, como embaixadora do Instituto Avon na campanha #FaleSemMedo (de combate à violência contra a mulher), fez uma queixa ao Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) do Ministério Público de São Paulo, na qual apresentou exames médicos e mais de 20 imagens de hematomas para provar que fora agredida pelo companheiro em 21 de maio em Nova York. Parisotto, que lamenta “versões distorcidas” do episódio ocorrido na intimidade, está proibido de se aproximar da vítima.
A exposição de Luiza ocorreu na mesma semana em que um menino de 11 anos utilizou o Facebook para denunciar o próprio pai como agressor da mãe. Ele publicou uma foto da mãe, Fabiane Boldrini, com o rosto ensanguentado depois de ter sido espancada pelo militar Joel Jorge.
“Ela é vítima dele por muitos anos. Ele fraturou o nariz dela com um soco, porque ela disse que não queria mais viver com ele, aguentando tudo”, desabafou o garoto.
Assim como Fabiane, cerca de um terço das mulheres já estiveram em uma relação afetiva na qual vivenciaram alguma forma de violência física ou sexual por seus parceiros, segundo estatística da ONU Mulheres – a entidade das Nações Unidas que vigia os atos que atentam contra a população feminina. Companheiros, namorados e maridos são autores de 38% dos feminicídios cometidos em todo o mundo.
O tipo de homicídio qualificado ganhou legislação própria no Brasil, sancionada em 2015 pela presidenta Dilma Rousseff. A Lei do Feminícidio altera o código penal para prever o assassinato de uma mulher, pelo fato de ela ser mulher, como um tipo de homicídio qualificado e incluí-lo no rol de crimes hediondos.
Ou seja, está sujeito às regras do júri popular. A pena, que aumenta de 6 a 12 anos para 12 a 30 anos de prisão, pode ter um acréscimo de um terço, caso o crime ocorra durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; quando for contra menores de 14 anos ou maiores de 60; na presença de um descendente ou ascendente da vítima.
No levantamento Mortalidade de Mulheres por Agressões no Brasil: Perfil e estimativas corrigidas (2011-2013), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta 17.581 óbitos por agressões no período.
Foram 5.860 mortes de mulheres por causas violentas a cada ano, 488 a cada mês, 16,06 a cada dia, ou uma a cada hora e meia. O estudo confirmou que a mortalidade por agressões atinge mulheres de todas as faixas etárias, etnias e níveis de escolaridade, e não ocorre apenas nas classes mais pobres.
Coautora do estudo, Leila Posenato Garcia conta que, em 2013, uma das funcionárias do órgão, então subordinado à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, morreu em decorrência de agressões feitas pelo marido Anderson Batista Soares.
Marcela Aragão apareceu algumas vezes com hematomas no rosto, mas buscava disfarçar. A falta de coragem para denunciar abriu espaço para que mais agressões ocorressem e culminassem com cárcere privado e espancamento até a morte na frente do filho do casal, à época com pouco mais de 1 ano de idade.
“Á época, o caso não foi tratado como feminicídio, e brigamos muito em audiências na Câmara para que a lei contra esse crime fosse aprovada”, conta Leila, ao ressaltar que o caso de Marcela tem um ciclo típico: discussões com violência psicológica ou moral cada vez mais frequentes que deságuam em violência física, quando não em morte.
“Sabemos que a lei não prevenirá a violência, mas pode responsabilizar os agentes pelo homicídio tipificado. Se o caso ocorresse depois da aprovação da legislação, esse homem ao menos estaria preso. É uma agressão que não termina com a morte da mulher, mas deixa sequelas na família inteira.”
Dados do Mapa da Violência 2015 mostram que entre 2003 e 2013 o número de vítimas do sexo feminino mortas cresceu 21%, passando de 3.937 para 4.762 em todo o País. Além das cifras alarmantes que a Lei do Feminicídio busca reverter, as mulheres vítimas de agressão são amparadas pela Lei Maria da Penha, legislação que busca combater a violência doméstica, batizada em homenagem à farmacêutica bioquímica Maria da Penha, que em maio de 1983 sofreu tentativa de homicídio por Marco Antonio Viveros, seu marido e pai de suas três filhas.
O caso, que ficou sem solução por 15 anos e a deixou paraplégica, foi então levado para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) pela vítima e as ONGs Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) e o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil).
Em 2001, a comissão responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica contra as mulheres. E em outubro de 2002, faltando seis meses para o crime prescrever, Viveros foi preso. Cumpriu um terço da pena e hoje está em liberdade.
“No meu caso, nem pude denunciar, porque não havia nenhum aparato para ajudar as vítimas”, afirma Maria da Penha, hoje com de 71 anos, ao lembrar que a própria Delegacia da Mulher (atualmente com 499 unidades no País) foi criada em 1985, dois anos depois do tiro que a condenou à cadeira de rodas.
“Nada garantia que a mulher que denunciasse não fosse sofrer mais violência, pelo contrário. Ou o agressor não aceitava a separação e podia agredi-la ainda mais, ou essa mulher escutava: ‘Ruim com ele, pior sem ele’; ‘mulher desquitada não tem valor’; ‘por que você não consegue equilibrar o seu casamento?’”
Apesar de dar conta de casos de violência doméstica e não cobrir aqueles que ocorrem fora da esfera afetivo-familiar, a lei sancionada em 7 de agosto de 2006 é um avanço que surge em resposta à fraca postura do Estado brasileiro quanto à impunidade nesses casos, mais comuns do que se imagina.
De acordo com a Secretaria de Política de Mulheres (SPM), em 72% dos casos atendidos em 2015 os agressores eram homens com quem as vítimas se relacionavam ou já haviam tido algum vínculo afetivo. No País, uma em cada três mulheres sofre algum tipo de violência, seja física, psicológica, moral, sexual, seja patrimonial, mas apenas 6% denunciam.
O fato de o agressor ser alguém conhecido – como no episódio Brunet-Parisotto – é, muitas vezes, um grande desestímulo à mulher fazer a denúncia. Muitas sentem-se desencorajas a falar com medo de retaliações ou mesmo envergonhadas por não conseguir livrar-se de um círculo vicioso.
Como forma de encorajar as vítimas, a plataforma Minha Voz coleta e reúne depoimentos anônimos (como os publicados no início desta reportagem), auxilia as vítimas a procurar ajuda e informa sobre leis e instituições para ampará-las.
“O Minha Voz nasce da percepção desse impasse. Muitas vezes, a mulher em uma situação dessas demora muito tempo para se reconhecer nesse lugar e compreender que também foi vítima de violência”, explica a psicóloga Daniela Silveira Rozados, idealizadora da ferramenta ao lado de Salete Silva Farias, do Instituto Federal do Maranhão.
“Existe um aspecto cultural, social, mas também um elemento psíquico. Quando essas relações se estabelecem de modo abusivo, tornam-se difíceis de ser rompidas. São relações complicadas, muito ambíguas.”
Apesar de não deixar marcas como a agressão física, a violência psicológica (expressa em constrangimento, insulto e vigilância constante), a violência moral (contra a honra e a dignidade da vítima) e a violência patrimonial (entendida como a subtração dos seus bens e recursos econômicos) são consideradas graves violações dos direitos fundamentais das mulheres e consideradas pela OMS como a forma mais presente de agressão à mulher dentro da família. A sua sistematização e naturalização são vistas como estímulos a uma espiral de violências dentro do núcleo familiar.
Além dos 38.451 (50,15% do total) casos de violência física recebidos no ano passado pela Central de Atendimento à Mulher, houve 23.247 relatos de violência psicológica (30,33%), 5.556 de violência moral (7,25%), 3.961 relatos de cárcere privado (5,17%), 3.478 relatos de violência sexual (4,54%), 1.607 relatos de violência patrimonial (2,10%) e 351 relatos de tráfico de pessoas (0,46%).
A pesquisa Avaliando a Efetividade da Lei Maria da Penha, publicada em 2015 pelo Ipea, ressalta que a lei contribuiu para diminuir em cerca de 10% a taxa de homicídio contra mulheres dentro de casa e lembra: a violência doméstica ocorre em ciclos, “onde muitas vezes há um acirramento no grau de agressividade envolvida” que pode resultar na morte do cônjuge.
“A violência contra as mulheres está amparada no machismo, no qual os homens se consideram com poder sobre vidas e corpos das mulheres, amparado na reprodução de estereótipos que naturalizam a violência, por meio da publicidade, veículos de comunicação, educação e práticas culturais”, observa Corina Rodríguez Enríquez, economista feminista do comitê executivo do Development Alternatives With Women For a New Era (DAWN).
“São dinâmicas fortemente arraigadas na sociedade, e desconstruir essas visões requer múltiplas intervenções. Nós, mulheres, temos a obrigação de não deixar passar nenhum ato de violência sem expô-lo ou denunciá-lo. Dos mais simples assédios na rua aos mais terríveis feminicídios, é necessário mostrar que a violência não é natural, mas resultado de relações socialmente construídas, que implicam desde a subordinação das mulheres até as formas mais extremas de violência e morte.”
A arraigada cultura do machismo confere ao Brasil, entre 83 países, um constrangedor quinto lugar no Mapa da Violência. Fica atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. No mundo todo, aliás, o ultraje diante de tal situação tem produzido vigorosas manifestações de rua, mobilização da sociedade mais esclarecida – inclusive homens – e medidas de efeito prático.
Pelo menos 119 países dispõem hoje de leis específicas contra a violência doméstica, 125 têm instrumentos legais para penalizar o assédio sexual e 52 nações se acautelam juridicamente para defender as vítimas de estupro marital. Ainda assim suspeita-se que em certos países o número de mulheres que sofreram algum tipo de violência física e/ou sexual do parceiro possa chegar a 70%.
Grandes marchas aconteceram, nos últimos meses, na banlieu de Paris, onde as imigrantes do Norte da África, em especial, padecem dos abusos de seus companheiros, em Madri, com o apoio de 350 diferentes entidades e dos partidos de esquerda PSOE, Podemos e Esquerda Unida (1.392 mulheres foram assassinadas na Espanha nos últimos 20 anos) e, em Londres, a passeata convocada pelo movimento Million Women Rise encheu de bandeiras e gritos a Trafalgar Square, em março.
No ano passado, duas tragédias sacudiram a passividade das mulheres argentinas. O corpo de uma garota de 14 anos foi descoberto no subsolo da casa do namorado dela, na cidade de Rufino, província de Santa Fé. Descobriu-se que Chiara Paez estava grávida.
Foi agredida pelo namorado até morrer. Um mês antes, Maria Eugenia Lanzetti, professora de 44 anos do curso elementar, em Córdoba, viu o marido irromper na sala de aula e quebrar o seu pescoço diante das crianças. Foram duas das 77 vítimas de femicídio na Argentina em 2015.
Uma situação tristemente irônica aconteceu na estreia londrina de Suffragette, dirigido por Sarah Gavron. O filme rememora a saga das feministas avant la lettre do início do século XX, as quais, ainda que ridicularizadas pela mídia e pelo establishment, saíram às ruas em prol de direitos iguais – a começar por aquele de votar.
Ativistas do Sisters Uncut deitaram-se no tapete vermelho da Leicester Square para lembrar que, um século depois, a luta ainda não terminou. Foram brutalmente retiradas dali por musculosos leões de chácara do sexo masculino.
*Reportagem publicada originalmente na edição 909 de CartaCapital, com o título “Entre o amor e o ódio”
Marsílea Gombata
Acesse no site de origem: Mulheres, entre o amor e a morte (CartaCapital, 15/07/2016)