(BBC, 31/07/2016) A artista performática e dramaturga americana Kate Bornstein já vivenciou muitas vidas e identidades. Nascida “ele” – foi batizada como Albert -, fez sua transição para o sexo feminino na década de 1980.
Mas, em entrevista ao programa Outlook do BBC World Service, disse que hoje não é homem nem mulher.
Sua assessoria de imprensa sugere que os pronomes ingleses they, them e theirs (eles e deles), que na língua inglesa têm gênero neutro, sejam usados em referência a Bornstein.
Esse recurso, porém, não existe na língua portuguesa. Como alternativa, grupos que defendem a inclusão de gênero vêm sugerindo sistemas alternativos de linguagem. Na escrita, o mais comum é a substituição do “o” e do “a” nas palavras com gênero masculino e feminino por “@”, “x” ou “e”.
Atendendo ao pedido de Kate Bornstein, a BBC Brasil adotará o sistema sugerido, substituindo artigos de gênero pela letra “x” em referências à identidade sexual dx artista.
‘Então sou menina’
X artista iniciou a entrevista contando que nasceu na década de 1950 no Estado de New Jersey, nos Estados Unidos. Sua família era pequena e bastante convencional: o pai médico, a mãe, Kate (na época Albert) e seu irmão mais velho.
Kate disse que nunca sentira nada de diferente em relação a sua identidade até começar o jardim da infância, aos quatro anos e meio de idade.
“Sempre fui o bebê (da casa), então não havia (o conceito de) gênero.”
“(No meu primeiro dia na escola) pediram que fizéssemos fila. Meninos de um lado, meninas de outro. Olhei para a fila dos meninos e pensei, ‘não, acho que não é essa’. Olhei para a fila das meninas e pensei, ‘é com elas que quero ficar’.”
“Fui fazer fila junto com as meninas e a professora veio falar comigo. ‘Essa é a fila para as meninas’, ela disse. ‘Ok, então eu sou menina!’ Ela fez uma cara feia e eu corri para a fila dos meninos. Mas daquele momento em diante, entendi que eu não era menino – e que eles não me deixavam ser menina.”
“Me senti perdidx e solitárix. Ninguém mais que eu conhecia era assim.”
A sociedade tem formas sutis de fazer com que as pessoas respeitem as regras, explicou Kate.
“Ninguém força você a entrar na linha. Você obriga a si mesmx. Não queria ser uma aberração. ‘Ok, prefiro não ser eu mesmx, desde que as pessoas não me persigam.”
Kate foi para uma escola de meninos. Lá, era tidx como “o judeu gordo”, alvo de zombarias por ser gordx e por conta do antissemitismo. Na escola secundária, para evitar a crueldade dos colegas, descobriu sua veia cômica – e foi fazer teatro.
“Quando você atua, pode ser outras pessoas. E eu não queria ser eu. Então, me empenhava em ser outras pessoas – e era um ótimo ator”, contou Kate.
Cientologia
Terminado o colégio, Kate embarcou em uma longa jornada espiritual.
“Eu era um típico hippie. Cabelo longo até os ombros, camisas floridas e calças de boca larga. Foi um período maravilhoso. Peguei a estrada no meu microônibus e fui parando em várias comunidades espirituais, até encontrar os cientologistas.”
Kate explicou que o conceito de espiritualidade na Cientologia parecia fazer muito sentido para elx, que não se sentia bem na sua identidade masculina.
“Os cientologistas acreditam que você não é seu corpo nem sua mente. Você é sua própria alma espiritual e imortal. Portanto, você não precisa de espaço ou tempo, não existe na matéria ou na energia. Eu pensei, ‘se é assim, não preciso ter um gênero’, eu pensei”.
Kate foi subindo na hierarquia da Igreja da Cientologia e tornou-se parte da elite da organização. Nesse processo, casou-se duas vezes com mulheres que também pertenciam à igreja e teve uma filha com a primeira esposa.
Um dia, por acidente, descobriu irregularidades na contabilidade da organização. Ao tentar esclarecer o problema, Kate foi acusadx de fazer espionagem a serviço de uma organização inimiga.
Elx se viu obrigadx a escolher entre um “projeto de reabilitação” – que envolvia trabalho intensivo, seis horas de sono por noite, em chão duro, e alimentação à base de restos dos outros integrantes da seita – ou ser excomungadx.
Elx optou pela excomunhão. Nesse processo, teve de deixar para trás a segunda mulher e a filha.
“Uma das razões pelas quais eu fiquei (na organização) é que eu amava muito minha segunda esposa. E por causa de minha filha. Mas tive de deixá-las para trás. Os cientologistas não têm permissão de falar com pessoas que deixaram a religião.”
Após deixar a Cientologia, Kate viveu um período difícil. Continuava não se aceitando como homem e pensava: “Então só posso ser mulher”.
Mas ainda resistia. “Não queria ser uma aberração.”
Casou-se novamente, desta vez com uma ex-namorada do tempo da escola que queria “curar” o marido de seu desejo de ser mulher.
“Não funcionou. Um ano mais tarde, meu pai morreu e finalmente me senti livre. Não tinha mais de ser o bom filho. Comecei minha transição de gênero.”
Transição
Kate explicou que cada transsexual vivencia esse momento de transição de forma diferente.
“Eu estava muito animadx, achava que isso ia resolver todos os meus problemas, embora na terapia tivessem me avisado que não era assim.”
“Acordei depois da cirurgia e pensei, ‘agora sou mulher, isso é maravilhoso, que alívio’. Eu finalmente sabia o que as outras pessoas sentiam quando tinham certeza de seu gênero.”
Mas a realidade foi diferente. “Como homem, eu tinha vivido minha vida observando o que outros homens faziam e copiando uma coisa aqui, outra ali. Então, ser homem para mim era fingimento, era uma farsa.”
De repente, Kate descobriu que teria de fazer o mesmo para ser mulher.
“Eu não sabia como ser mulher, tive de observar mulheres, aprender a falar como mulher, andar como mulher… virou teatro novamente. E ainda por cima, eu era lésbica. Isso tinha sido um obstáculo na minha transição de homem para mulher.”
Naquele tempo, uma mulher de verdade não podia se atrair por outra mulher. Essa questão, Kate explicou, foi resolvida em uma sessão de terapia.
“Minha terapeuta me explicou que há uma diferença entre orientação sexual – ou seja, com quem você vai para a cama – e identidade de gênero – quem você é quando vai para a cama.”
“Mas eu continuava em conflito, ‘eu não posso amar mulheres, não está certo!’, eu dizia. Até que minha terapeuta perdeu a paciência e disse, ‘agora chega, você é lésbica, entendeu?'”
Sem categorias
Kate então se mudou para São Francisco, na Califórnia, e conheceu uma comunidade de transexuais.
“Éramos uma família. Naquele tempo, havia muita solidão na transexualidade. Ainda não existia a internet. ”
Hoje, a pessoa transgênero está sendo reconhecida como homens e mulheres que viveram uma experiência de transição, disse Kate.
“Mas ainda há muitxs de nós que ficam fora dessas categorias e dizem ‘não somos homens nem mulheres’.”
“A palavra agora é não binárix,” disse Kate. “Eu sempre duvidei de pessoas que acham que são homens ou que são mulheres. Mas aprendi a respeitar suas verdades de gênero.”
Acesse no site de origem: Artista que já foi homem e mulher conta por que agora tem gênero neutro (BBC Brasil, 31/07/2016)