Muitos ainda responsabilizam a mulher pela violência sofrida por conta da desigualdade de gênero e da cultura do estupro, avalia socióloga
(CartaCapital, 21/09/2016 – acesse no site de origem)
“A mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”. Apesar de transferir a culpa da violência à vítima, tal expressão é referendada por 30% dos brasileiros, revela uma pesquisa do Instituto Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgada nesta quarta-feira 21. O percentual de concordância foi o mesmo entre homens e mulheres, mas aumenta entre as pessoas com mais de 35 anos e menor grau de escolaridade.
“A obrigação imposta às mulheres de obedecer a um padrão para não estarem expostas a uma violência dos homens nos coloca como objeto”, afirma a socióloga Maria José Rosado, coordenadora da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir, em entrevista à CartaCapital.
CartaCapital: O que esses dados revelam sobre a sociedade brasileira?
MJR: Revelam duas coisas fundamentais. Primeiro, uma profunda desigualdade de gênero. Aos homens tudo, às mulheres quase nada. Homens podem vestir-se, apresentar-se como queiram, falar para quem querem, e o que quiserem, inclusive para nós. Mas para as mulheres designam padrões de comportamento, de estética, linguagem e profissão.
A segunda questão é que esses dados explicitam a cultura do estupro. Nós, mulheres, mal temos autonomia para nos vestir da maneira como quisermos. A obrigação imposta às mulheres de obedecer a um padrão para não estarem expostas à violência dos homens nos coloca como objeto, como propriedade de outro grupo de seres humanos. É como se eles fossem nossos donos e definem o que podemos ou não fazer.
CC: Quais são algumas políticas públicas que podem reverter essa mentalidade?
MJR: Todas as políticas públicas que agora estão em decomposição por esse governo que se assenhorou do poder, sem legitimidade nas urnas, desfavorecem a população de etnia negra e indígena, que tinha a possibilidade de alcançar a educação, assim como a população de mais baixa renda, que tinha a possibilidade de alcançar um grau mais elevado de profissionalização.
Isso influi porque as estatísticas mostram que, ainda que a violência sexual atravesse todas as classes sociais, sabemos que ela sempre se abate de maneira mais forte sobre os grupos mais vulneráveis. São fundamentais políticas públicas que permitam que essas mulheres de classe pobre, negras ou indígenas, ascendam à universidade.
São igualmente necessárias as campanhas contra o machismo da sociedade, contra o domínio patriarcal, e que permitam as mulheres tornarem-se sujeitas políticas, tendo lugar adequado nos partidos políticos. Valorizar o estado laico também é fundamental. A cultura religiosa que ainda coloca as mulheres no segundo plano contribui para a cultura do estupro, para essa mentalidade que permite a violação dos nossos direitos.
O mesmo vale para as políticas públicas de sexualidade e reprodução, e a possibilidade do aborto sem correr risco de vida, porque tudo isso são formas de empoderar as mulheres, de reafirmar que são sujeitas da sua própria vida. Empoderar as mulheres é torná-las menos vulneráveis à violência dos homens.
CC: A tentativa de restringir o aborto, mesmo em caso de estupro, tem chances de avançar nesse meio?
MJR: O nicho que pensa dessa forma muito provavelmente será contra o direito das mulheres regularem sua capacidade reprodutiva, o que inclui o direito ao aborto legal, seguro e gratuito nos hospitais. Mas eu acredito que não tem chances de avançar, porque nós tivemos mais uma possibilidade de aborto legal, que é o caso dos anencéfalos.
Agora tramita uma proposta de que as mulheres possam optar por levar adiante, ou não, uma gravidez em que há indícios de que o feto poderá ser atingido pelo vírus zika. Acho que o horizonte que temos é de maior permissividade, e não de restrição de direitos, apesar desse governo ilegítimo.