A primeira romancista de Moçambique fala sobre seus livros, a condição das mulheres em seu país e o diálogo com o Brasil
(Brasil de Fato, 21/09/2016 – acesse no site de origem)
Quem olha Paulina Chiziane dificilmente diz que daquela mulher já idosa, negra retinta de olhos azuis e sorriso tímido, nasce talvez a escrita mais provocativa de Moçambique.
Sua imagem doce e acolhedora, sua voz aveludada e mansa convidam para a uma aproximação. E, ao ouvi-la, há quem se assuste com o teor de suas palavras, que trazem ideias de liberdade.
A escritora nasceu há 61 anos em Manjacaze, sul do país, região marcada por um forte patriarcado. “Ainda hoje, eu, que sou uma mulher velha, quando chego ao meu vilarejo tenho que me abaixar quando vejo um homem em sinal de respeito. Pode ser qualquer um, até mesmo um bêbado’”, conta.
Paulina cresceu nos arredores de Maputo, capital do país. Filha de família religiosa cristã, logo casou-se, teve dois filhos. Conheceu “as primeiras amarguras’’ e começou a questionar não apenas o seu, mas o lugar reservado no mundo para as mulheres.
Leitora assídua da bíblia, a escritora diz ter descoberto em suas pesquisas um Jesus “revolucionário, defensor dos direitos humanos e feminista”. Para ela, seus escritos são tão sagrados quanto a bíblia. “Precisamos desconstruir esse mito que sacraliza as ideias de uns em detrimento das de outros; a minha inspiração também é sagrada”, afirma.
Escritora
‘’Como me tornei escritora? É algo que não sei responder. Apenas posso dizer que a escrita me escolheu, da mesma forma que a natureza me tornou mulher” – escreveu em 1992 no texto ‘’Eu, mulher‘’, publicado pela Unesco. Na mesma publicação, Paulina conta que a contradição que encontrava entre o mundo que a rodeava e o mundo que residia no seu íntimo a inspiraram a escrever.
“A escrita é um espaço de liberdade onde posso negociar a minha própria identidade, o que sou, o que faço, quais são os meus sonhos”, disse em entrevista ao Brasil de Fato durante sua passagem pelo Brasil, em agosto.
Começou a escrever em jornais em 1984, mas foi apenas em 1990 que publicou o primeiro livro. Não eram apenas os preconceitos de gênero que dificultavam a entrada de Paulina na vida literária. Moçambique era um território em conflito.
Na juventude, participou ativamente da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). ‘’Escrevi a primeira obra [Baladas de Amor ao Vento] debaixo de estrondos e ameaças de morte. Publiquei-a. Escrevi a segunda [Ventos do Apocalipse] debaixo do mesmo ambiente (…). Trabalhar numa atmosfera de morte é minha forma de resistir. Ninguém tem o direito de interromper os meus sonhos’’, publicou.
Obras
Ao todo a escritora tem nove livros publicados. ‘’Niketche – Uma História de Poligamia’’, sem dúvidas é o mais polêmico e ganhou edições em todo o mundo. “Com o livro, os homens ficaram muitos zangados comigo e as mulheres muito felizes”, ri.
Sua última obra lançada em setembro de 2015, ‘’Ngoma Yethu – O curandeiro e o Novo Testamento’’, causou grande agitação no meio mais conservador de seu país por abordar em pé de igualdade o cristianismo europeu e o curandeirismo africano. O livro consagra a parceria com a curandeira Mariana Martins.
“Se a bíblia foi uma arma de opressão pode ser também de libertação’’, afirma a escritora ao acrescentar que a África vive uma nova colonização realizada por igrejas evangélicas”.
’’Os brancos evangélicos estão sempre atrás do diabo, e quem é o diabo? Ele é um espírito que está sempre em um negro. A caça ao diabo começa a eliminar aos poucos a cultura e memória coletiva’’, comenta.
Moçambique
A romancista relembra que a colonização deixou um legado de guerras e, por isso, os homens estão sempre ausentes. “Quem segura a sociedade africana são mulheres”, afirma.
As suas obras trazem essa dualidade e revelam a existência de dois países distintos dentro de um. De um lado há o sul, região mais rural e patriarcal, onde são as mulheres que fazem a manutenção do machismo, enquanto os homens passam dias longe de casa nas lavouras. Do outro, há o norte, onde as mulheres vivem um “matriarcado feliz”, segundo Paulina.
A escritora afirma que seu país possui um dos maiores movimentos feministas da África. “Depois da libertação, a pauta das mulheres entra como política de estado; somos a nação com mais mulheres em cargos de poder na política”, afirma.
Brasil-África
Se negros brasileiros vão beber em fontes africanas como um resgate da identidade e ancestralidade, a escritora acredita que a África precisa também se aproximar do Brasil.
“Me tornei mais atrevida em relação a minha escrita quando entrei em contato com os movimentos negros brasileiros, isso me deu vitalidade de discutir o que significa ser negro dentro e fora da África”, finaliza.
Confira a entrevista:
Como é a situação da mulher moçambicana hoje?
Paulina Chiziane: É como a situação das mulheres em quase todo o mundo. A nossa diferença é que o nosso movimento de libertação priorizou a emancipação das mulheres, mas sinto algumas vezes que isso é mais uma sobrecarga, ela participa da vida pública, política e familiar.
Suas personagens são inspiradas em mulheres reais?
Em África não precisamos ter o trabalho de imaginar ou sonhar, essas mulheres desfilam nas ruas perto dos nossos olhos. Às vezes pego meu gravador, sento na rua e converso com a primeira mulher que passa e tenho uma história. Eu não privilegio o feminino, mas sou parte do feminino, estou a escrever sobre mim, sou mulher, escrevo sobre pessoas que me rodeiam, que também são mulheres.
Como vê a produção literária sobre Moçambique?
Considero meu país um lugar virgem, ainda não foi escrito, o acesso à escrita é muito limitado. A nossa independência é muito recente, apenas 40 anos. E mulheres que tenham experiência e gostem de escrever ainda são poucas… A literatura é arma para desconstruir toda a mentira histórica que vem sendo reproduzida em todas as bibliotecas do mundo sobre nós, africanos.
Pode falar sobre seu livro “Por Quem Vibram os Tambores do Além’’, de 2013?
Esse livro foi muito difícil, pois quebrava muitos tabus. A função dele é a preservação da cultura moçambicana através da escrita, isso ainda não está feito em Moçambique.
“Niketche – Uma História de Poligamia”’, é seu livro de maior sucesso. Como surgiu a ideia de escrevê-lo?
Não planejei escrever sobre isso. Um dia estava na varanda de casa quando vejo três mulheres discutindo por um homem. O que me chamou atenção foi a forma como cada uma falava que seu modo de fazer sexo era o preferido daquele homem… Passou-se alguns anos e resolvi entrevistá-las e falei com ele também. Assim nasceu o livro que quebrou todas as fronteiras, justamente por falar sobre a necessidade de mudança nas relações de poder entre homens e mulheres.
Como enxerga o diálogo entre Brasil e África?
Acredito que esse diálogo apenas está começando. Minha escrita mudou desde que comecei a intensificar minha conversa com os movimentos brasileiros, em especial de mulheres negras. A África muitas vezes esquece de seus filhos nesse continente. Há os africanos que estão em África e os que estão espalhados pelo mundo.
Em seus livros, você aborda muitos assuntos religiosos de uma maneira considerada subversiva… Qual foi o papel da religião na história africana?
Usaram o nome de deus para ficar com a nossa terra, nosso nome, nossa vida. Em nome dele nos colocaram em desgraça. A religião foi a primeira grande arma usada pela colonização. Isso me faz descrente do cristianismo, mas não de Jesus, a quem considero um revolucionário. Além disso, somos (africanos e afro-brasileiros) produtos do milagre divino, algumas pessoas teriam sucumbido após a colonização e escravidão, mas nós sobrevivemos. Esses questionamentos são necessários para assumirmos o nosso lugar na história do mundo. Sou filha de gente de grande pensamento, tenho herança cultural, religiosa e histórica, se me foi tirado algo vou lutar para recuperar o que é meu.
Como os jovens dialogam com as suas obras?
Meus livros estão presentes nas escolas. Os jovens leem e gostam muito. Mesmo assim, as gerações mais novas tem um defeito: esquecem o que passou e pensam que o mundo é algo que está pra vir, mas o passado está sempre presente. É muito bom quando me reúno com eles e sou a mais velha porque na minha terra as mais velhas sentam-se em roda com a geração mais nova para falar sobre o passado e sonhar o futuro.
Juliana Gonçalves; Edição: Simone Freire.