Especialistas esclarecem o que está por trás das violências invisíveis – psicológica, moral e patrimonial -, que atinge três em cada cinco mulheres brasileiras
(Marie Claire, 29/09/2016 – acesse no site de origem)
“Louca.” “Puta.” “Fiz por amor.” “Incapaz.” “Ninguém vai acreditar.” Falas como estas fazem parte do cotidiano de milhões de brasileiras. Segundo relatório da ONU, três em cada cinco mulheres sofreram, sofrem ou sofrerão violência em um relacionamento afetivo no Brasil – e nem todas as feridas aparecem. São as cicatrizes das violências invisíveis – psicológica, moral e patrimonial –, também conhecidas como relacionamento abusivo, que cala e aprisiona.
Uma campanha lançada, nesta terça (27), pela ONG Artemis, em parceria com a marca Lush, pretende jogar luz sobre uma realidade tão comum, mas ainda bastante desacreditada pela sociedade e pelo sistema judiciário. Diante disso, Raquel Marques, presidente da Artemis, Silvia Chakian, promotora de justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (GEVID), e Alice Bianchini, doutora em direito penal e membro da Comissão da Mulher Advogada do Conselho Federal, reuniram uma série de fatos capazes de esclarecer este tipo de agressão.
1. O relacionamento abusivo ainda é visto como uma simples briga de casal
A Lei Maria da Penha compreende que violência doméstica é “Qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. E para configurar a violência, nos termos da Lei, ela não precisa ser continuada, nem atual, nem duradoura, bastando que exista uma relação afetiva entre a vítima e o agressor, mesmo que não residam no mesmo local.
“Apesar de todo esse esclarecimento, ainda tem sido muito difícil lidar com o machismo institucional, dentro do sistema de justiça”, aponta Silvia Chakian. “Vejo diariamente vítimas sendo desacreditadas em juízo e questionadas exaustivamente nas delegacias. Como se a mulher, por ser mulher, não fosse digna de crédito. Ela é confrontada, questionada e cobrada com uma coerência absurda e impossível de ser conhecida. O depoimento de quem sofre esse tipo de violência é muito marcado por incoerências, lapsos de memória, falas entrecortadas – próprios do pós-trauma. Deparamos-nos então com a recorrente revitimização e descrédito.”
Ainda segundo a promotora, quando uma mulher decide romper com o silêncio, a primeira reposta que ela vai receber, seja na delegacia, no ministério público ou em um centro de referência, pode ser determinante para que nunca mais busque ajuda e acredite que seu destino é viver em um relacionamento violento.
2. Ciúme pode não ser saudável, mas sinônimo de controle
Os sinais que antecipam um relacionamento abusivo às vezes podem ser sutis. Hoje, muitas mulheres ainda tendem a acreditar que um relacionamento sem ciúme, é uma relação sem amor. “O problema é que muitas vezes esse ciúme vem camuflado de zelo e cuidado, e não parece controle”, alerta Silvia.
“Quando um namorado diz para a namorada, ‘troque essa saia, porque assim você não vai sair comigo’, o problema não é a roupa. A mensagem que fica neste relacionamento é: quem mandar e quem obedece”, explica a promotora. “Mulheres tendem a minimizar o comportamento violento e a não interpretar a conduta abusiva como violência. Muitas vezes elas se responsabilizam – ‘Eu sou difícil’, ‘Estava nervosa’, ‘Realmente provoquei’ -, como se tivessem contribuído ou até mesmo merecido a agressão que não necessariamente é física.”
Em alguns casos, diz, a responsabilização pela conduta violenta é relacionada a fatores externos, como o consumo de álcool ou outras drogas. “Já ouvi vítima dizer: ’Ele me agrediu porque estava nervoso, porque bebeu’. Não, a motivação da violência de gênero é interna. O sujeito quando enche a cara no bar não agride o amigo, ele espera chegar em casa para violentar a companheira.”
3. Por que é tão difícil romper com o ciclo de violência?
“O ciclo de violência leva anos para ser rompido, em alguns casos chega a levar até dez anos”, diz Alice Bianchini. “E ela costuma ser gradativa, até alcançar seu ápice, que vem acompanhado de uma fase de reconciliação e promessas, que logo são quebradas, e assim o ciclo recomeça.” E a tolerância social com relação à violência contra a mulher é um dos impedimentos para a quebra deste circuito perigoso.
Uma pesquisa do Ipea de 2013 diz que 65,3% da população brasileira concorda com a seguinte frase: “Mulher que apanha e continua com o companheiro gosta de apanhar”. De encontro a esta estatística está uma pesquisa de 2015 realizada pelo Senado Federal. Um levantamento feito com vítimas de violência doméstica apontou que 24% delas se mantêm no relacionamento por preocupação com a criação dos filhos, enquanto 21% diz temer uma vingança por parte do agressor. Precisamos dar fim aos estereótipos de gêneros.
4. O feminicídio costuma ser o resultado de um ciclo violento de relacionamento abusivo
Uma pesquisa da ONU constatou que o Brasil é o quinto país do mundo com maior taxa de homicídio de mulheres – fim trágico de um longo histórico de violência. “O feminicídio não acontece abruptamente”, conta Raquel Marques. “Ele nunca é um episódio isolado na vida de uma mulher. A violência se desenvolve em uma escalada dentro de um relacionamento”, acrescenta Silvia.
O machismo e a misoginia predominantes no comportamento social, segundo elas, contribuem diretamente para esse índice. “Vivemos em uma sociedade que mata mulheres quando elas violam uma das duas leis do patriarcado. A primeira delas é a da submissão e a segunda é a da fidelidade. Em pleno século 21, nós ainda temos que lutar pelo direito do ‘não’ ser respeitado e isso está por trás dos assassinatos”, explica Silvia.
Daniela Carasco