Joyce Anelay: “É mais perigoso ser uma mulher do que um soldado”

10 de outubro, 2016

De entre as 376 candidaturas apresentadas este ano ao Prêmio Nobel da Paz, vencido pelo Presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, estava também o médico congolês, Denis Mukwegue Mukengere, ginecologista e Diretor do Hospital de Panzi, em Bukavu, na República Democrática do Congo. Ele é conhecido como o médico que “concerta as mulheres”, pois tem feito de tudo para salvar mulheres horrivelmente estupradas no contexto de guerra naquele país da África central. Para este médico, vencedor do Prêmio Sakharov 2014, o “carimbo” dessas violências tem variado conforme as fases da guerra no país, requerendo uma monitorização, para melhor se combater o fenômeno, frisava no Parlamento Europeu em 2011.

(Rádio Vaticano, 10/10/2016 – acesse no site de origem)

Sobre o tema do estupro em tempo de guerra já temos falado na rubrica “África. Vozes Femininas” várias vezes, mas nunca é demais voltar a ele, tanto é que o fenômeno continua a ser preocupante no mundo, envolvendo mesmo, nalguns casos, forças de manutenção da paz, como aconteceu por exemplo na República Centro-africana.

A questão do estupro em contextos de guerra é posta em foco, neste mês de outubro pelo mensário “Mulher, Igreja, Mundo”, anexo do jornal do Vaticano l’Osservatore Romano. Da África, à Ásia, à América Latina… com todas as suas nuances, passando por uma entrevista de Silvina Pérez, com Joyce Anelay, britânica, Secretária de Estado, desde 2014, para a Comonwealth e as Nações Unidas…Ela foi uma das principais protagonistas da cimeira das Nações Unidas sobre a reforma da manutenção da paz, em Londres, onde denunciou severamente os abusos sexuais dos capacetes azuis em missão de manutenção da paz… Vamos ver alguns aspectos desta entrevista, mas antes recordemos ainda alguns outros momentos de denuncia deste fenômeno aqui na nossa rubrica: em 211 falávamos do livro da nigeriana Pauline Aweto Eze sobre isso; em 2012 falávamos com o P. Bernard Ugeux, que se interrogava sobre a atitude que a Igreja na RDC deve ter em relação às vítimas das horrendas e constantes violações sexuais no país. Estará a fazer o suficiente, ou há algo mais que pode fazer para estar mais próxima dessas pessoas? O P. Bernard Ugeux, missionário em Bukavu, oferecia alguns pontos de reflexão e dizia que o fenômeno da violação sexual está a tornar-se banal na RDC. Ele sublinhava também a impunidade geral que há no país e o receio que as pessoas têm de denunciar esses atos por medo de represálias.

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Mas vamos à entrevista apresentada em “Mulher, Igreja, Mundo”:  Silvina Perez, que entrevistou Joyce Anne Anelay, começa por introduzir a questão dizendo que da análise das guerras no mundo nos últimos 30 anos, um dado muito claro: é mais perigoso ser uma mulher que um soldado. Por isso, compreender as modalidades da violência sexual contra a s mulheres é uma fadiga necessária pois que a primeira barreira a ultrapassar é precisamente a do silêncio. E ultrapassá-lo é já de per si um ato político. Esta a opinião de Joyce Anelay:

“Com efeito, os dados – diz ela – parecem ser de um boletim guerra. Segundo as agências da ONU mais de 60 mil mulheres foram estupradas durante a guerra civil na Serra Leoa (1991-2002), mais de 40 mil na Libéria (1989-2003), cerca de 60 mil na ex-Jugoslávia (1992-95), e pelo menos 200 mil na RDC durante os últimos 12 anos de guerra. No Sudão do Sul, sempre segundo dados da ONU, verificaram-se mais de 1.300 casos de estupro entre abril e setembro de 2015 só no Estado de Unity e mais de 50 casos de setembro a outubro. Mais ainda: em dez das 16 missões de capacetes azuis operativas em 2014, foram denunciadas 52 casos de estupro de meninas e outras violências sexuais cometidas por soldados, agentes de polícia e voluntários. Em 2015 o numero aumentou para 69 (e trata-se apenas dos casos vindos ao de cima). Uma das missões dos capacetes azuis sob investigação desde há meses é a MINUSCA, com quase 12 mil entre militares, politicas e pessoal civil encarregada de ajudar a repor a ordem na República Centro-africana, um país em conflito desde 2012. Depois do estupro duma criança de 12 anos, violentada em agosto passado durante uma operação confiada a capacetes azuis do Ruanda e dos Camarões, foram descobertos outros casos de violência sexual em crianças de rua. “

– Em muitos conflitos contemporâneos sem trincheiras, onde os combatentes são paramilitares com alianças ambíguas e volúveis, o corpo da mulher tornou-se num campo de batalha. O que se deve fazer para pôr termo a esta tragédia? – perguntou Silvina Pérez a Joyce Anne Anelay.

“É desde o seculo XIX que também os conflitos armados foram submetidos a determinadas normas de direito internacional, mas as guerras do passado eram muito diferentes das de hoje. Assim, as regras jurídicas que regulam os conflitos passaram nos últimos cem anos por uma rápida evolução. Com efeito, antes, o direito tradicional disciplinava somente os conflitos armados entre Estados e considerava combatentes legítimos apenas os membros dos exércitos regulares. Hoje a situação é outra. Tomemos, por exemplo, a República Democrática do Congo, que desde meados dos nos 90 está no centro de uma guerra sem precedentes na história da África pela sua violência e dimensão. Mais de 25 facções rebeldes e nada menos de oito exércitos que se combatem sem trégua. Ali, os estupros de massa em mulheres e crianças estão na ordem do dia (em média cerca de uma violência em cada minuto). Violências perpetradas tanto por rebeldes como por forças estatais de segurança. Novos problemas, portanto, e novos cenários abriram caminho a novas respostas: em 2008, chegou-se a um acordo histórico para pôr termo à violência sexual nos conflitos: a partir daquele momento, estupros e violências sexuais em zonas de conflitos constituem, tal como outros crimes de guerra, graves violações da Convenção de Genebra. Um caminho aberto pela ONU com a Convenção 1820 (…) em que, entre outros aspectos, se define os abusos sexuais contra o gênero feminino uma estratégia para  “para humilhar, dominar, assustar, dispersar ou recolocar à força, os civis membros de uma comunidade ou de um grupo étnico”.

– Como se pode proteger as mulheres?

“A Resolução das Nações Unidas reconhecem que, longe de ser acidental, esse tipo de violência constitui uma verdadeira e própria táctica de guerra. E podemos dizer que no século XX, se por um lado se afirma o estatuto jurídico do estupro como crime de guerra contra a pessoa, por outro a violência de massa contra a população feminina torna-se parte da estratégia político-militar e instrumento de limpeza étnica, usado para aterrorizar toda a comunidade de pertença. É claro que em tais contextos as normas internacionais são fundamentais, mas não bastam. Precisamente por isso, sobretudo as comunidades católicas e as mulheres das congregações religiosas – muitas vezes as únicas a permanecer durante e depois dos conflitos – são fundamentais. A sua grande determinação e o seu empenho são louváveis. Elas desempenham um papel muito importante na atenção aos mais vulneráveis, em apoiá-los e sustê-los também na procura da justiça. É difícil trabalhar nesses países. Há, por exemplo, entre os africanos, a tendência a dar aos outros a culpa de tudo, uma atitude que exonera da assunção das próprias responsabilidades. Isto está ligado a algumas superstições que tardam a ser extirpadas e que se manifestam na quotidianidade e qualquer motivo parece ser bom para exercer violência sobre as mulheres. Por isso, é necessário não só normas jurídicas adequadas, mas é preciso também que as comunidades possam trabalhar ao lado das vítimas. É necessário inverter rapidamente a rota, combater a impunidade, mas por onde começar? Pela educação: esta é a resposta, mas sem esquecer, naturalmente, a dimensão jurídica. Uma das prioridades do Reino Unido para 2016 é a de enfrentar, por exemplo, a estigmatização dos sobreviventes que são vítimas da violência e por isso são marginalizadas das próprias famílias e comunidades. Eis porque é muito importante a presença do religioso, mas temos de ir para além disso, garantindo às vítimas normas internacionais e uma possibilidade concreta de uma reinserção na sociedade”.

– O estupro, mais do que o homicídio semeia terror entre os civis, desagrega as famílias, destrói as comunidades e, nalguns casos, modifica a composição étnica da geração sucessiva. O que fazem as nações para cancelar definitivamente a cultura da impunidade em relação a esses crimes que, sabemos, são praticados também entre as fileiras dos peacekeeper?

“São centenas as mulheres que no decurso de guerras são violentadas e estupradas e não há dúvida de que se trata de uma violação dos direitos humanos. Infelizmente, abusos sexuais da parte de capacetes azuis foram documentados desde a Bósnia e o Kosovo, até à Camboja, a Timor Leste, à África Ocidental, ao Congo. A ONU já adotou uma linha de “tolerância zero” perante esses crimes e um código universal de conduta que faz parte integrante da formação dos peacekeeper. E quando as acusações de violação da parte de pessoal da ONU são certificadas, os responsáveis são repatriados e banidos para sempre das futuras operações de manutenção da paz. A ONU procura perseguir os casos até onde pode, depois toca aos tribunais e aos governos nacionais fazer a sua parte. A comunidade internacional já reconheceu, finalmente, que a violação sexual não é um problema individual  das vítimas, mas mina a segurança e a estabilidade das nações e nesta óptica é necessário exortar os governos do mundo inteiro a respeitarem as suas obrigações acerca dos direitos humanos e a fazerem mais no sentido de prevenir as violações dos direitos humanos e os abusos. O passo sucessivo será relativo a um protocolo internacional para as investigações sobre os abusos em zonas de guerra, e o Reino Unido terá a tarefa de elaborar e definir todos os pormenores com o apoio de diversos peritos internacionais. O Acordo de Londres de 2008 foi um passo histórico, mas não nos esqueçamos de que é preciso partir da cultura se queremos realmente pôr termo à violência, porque o que torna possível os estupros em massa foram e são ainda hoje a subordinação e a discriminação por que passam as mulheres, vítimas de mentalidades e culturas que justificam ou redimensionam os abusos. Todas as forças de paz precisam de ser bem treinadas, equipadas e aprovadas antes de entrarem em ação. Em terra temos necessidade de líderes capazes e corajosos. Esta é a razão pela qual o Reino Unido não é apenas um Estado que treina tropas, mas fornece também programas para melhorar as estruturas de formação e apoiar potenciais líderes futuros. Estamos na primeira linha também no processo de recolha e documentação de provas de estupros ocorridos, a fim de apoiar a formação de tribunais locais nos países onde acontecem esses factos.”

– Quais são hoje as zonas mais quentes no mundo deste ponto de vista? Pode-nos dizer em que partes do Planeta as mulheres correm hoje maiores riscos?

“No Sudão do Sul a situação é muito difícil. É desde 2013 que se combate uma guerra civil, uma luta pelo poder entre o Presidente Salva Kiir e o seu ex-vice Riek Machar. A maior parte da população vive na fome e no desespero e o peso maior, a dor maior, recai sobre as mulheres. Ali estamos perante um caso de “uso maciço da violência sexual como instrumento para aterrorizar e como arma de guerra” – tem várias vezes sublinhado a ONU. Segundo as Nações Unidas, os soldados governamentais e as milícias aliadas são, presumivelmente,  os principais responsáveis por violências sexuais em vasta escala, legitimadas ou incentivadas pelas próprias autoridades como recompensa a quem combate (e provavelmente não recebe nenhum salário). A equipa de investigação da ONU denuncia uma espécie de acordo tácito que teria permitido aos militares “fazer tudo o que podiam e apanhar tudo o que encontravam” incluindo o furto de gado e de outros bens. Ali é preciso intervir depressa e eficazmente”.

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