Em junho deste ano, o Ministério Público de São Paulo ofereceu a primeira denúncia no Estado pelo feminicídio de uma mulher trans. De acordo com informações do órgão, Michele era vítima de violência doméstica e foi assassinada pelo homem com quem mantinha uma relação há 10 anos, Luiz Henrique Marcondes dos Santos. A denúncia já foi aceita pelo Poder Judiciário.
(Débora Prado/Agência Patricia Galvão, 13/10/2016)
A denúncia foi aceita pelo Poder Judiciário – o que para o autor da denúncia, o promotor Flavio Farinazzo Lorza, é um passo extremamente importante.
“Ao oferecer a denúncia, a acusação precisava passar por um primeiro crivo do Judiciário, que iria dizer se receberia ou não a denúncia. E a denúncia foi recebida e não houve questionamento jurídico quanto à inclusão da qualificadora – isso já é um passo importante, já é um avanço. Oferecer a denúncia é um passo, receber sem questionamentos é outro passo, e é assim que as coisas mudam, é no movimento que as transformações acontecem.”
Há cerca de 10 anos atuando nos Tribunais do Júri, onde são julgados os crimes contra a vida, o promotor Flavio Lorza afirma que casos de violência contra as mulheres são recorrentes. “São incontáveis os casos em que mulheres são vítimas de violências que chegam ao extremo do assassinato. Isso é algo absolutamente visível a olhos nus”, frisa.
Para o promotor, a perspectiva de gênero é fundamental para enfrentar este cenário, uma vez que as discriminações por trás de muitos casos se baseiam em comportamentos sociais, e não em características biológicas, e portanto atingem as mulheres trans.
“Apesar da qualificadora do feminicídio usar a expressão ‘sexo’, operadores do Direito que já trabalham há mais tempo com o tema têm sido incisivos em afirmar que a ideia da lei não era fazer essa restrição”, explica.
No caso de Michele, a perspectiva de gênero é reforçada ainda pela aplicabilidade da Lei Maria da Penha. “Existia efetivamente uma relação afetiva, o acusado e a vítima eram companheiros, tinham uma relação estável”, relata o promotor, que destacou na denúncia realizada contra o acusado:
“Cumpre observar que a qualificadora do feminicídio, prevista no artigo 121, §2º, inciso VI, §2º-A, inciso I do Código Penal, é norma penal que necessita de complementação pela legislação especifica, qual seja a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), pois o conceito de violência doméstica nela está previsto. Assim, entende-se por violência doméstica qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, ocorrida dentro do ambiente doméstico, familiar ou de sua intimidade, podendo ser violência física, psicológica, sexual, patrimonial, moral e tantas outras. Portanto, não há que se questionar o caráter de violência doméstica empregada pelo denunciado à vítima, visto que eram companheiros e coabitavam há 10 anos.”
O Direito precisa reconhecer o machismo
O promotor considera que os avanços legislativos trazidos pela Lei Maria da Penha e pela inclusão do feminícidio no Código Penal contribuíram para que o Direito reconhecesse um fato evidente: o machismo e a violência que ele causa.
“A Lei Maria da Penha tem uma importância muito consistente: é fruto de uma experiência, não é uma construção teórica. O Direito se rendeu ao fato, reconheceu que a violência contra a mulher é real, que é um fato da vida e que exige um tratamento específico. Então, é um passo para o reconhecimento formal de um problema muito evidente: o Brasil é uma sociedade machista”, aponta Flavio Lorza.
Para o promotor, a importância da Lei Maria da Penha está justamente no reconhecimento de que a mulher é vítima de violências relacionadas aos papéis de gênero que, na maioria dos casos, são praticadas por homens que adotam valores machistas. “Homens que continuam considerando a mulher como um objeto do qual eles podem dispor quando e da maneira que quiserem”, explica o promotor.
A denúncia cita o trabalho de operadoras do Direito que são referências no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres, como a procuradora-geral da República Ela Wiecko e a coordenadora da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid) Valéria Diez Scarance.
Além das citações, a denúncia é assinada pelo promotor e pela estagiária do Ministério Público Nathalia Gomes Monteiro, cuja contribuição foi decisiva segundo o promotor. “Tive o apoio dela, que fazia seu trabalho de conclusão de curso sobre violência de gênero e estudava especificamente o tema de vítimas trans”, conta.
Quando as discriminações impõem a necessidade de leis protetivas
A história de Michele é tragicamente familiar no Brasil: de acordo com o Mapa da Violência 2015, dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no país, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que em 33,2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex.
São crimes que, muitas vezes, aconteceram após um histórico de desigualdades e violências e que poderiam ter sido evitados se os direitos previstos na Lei Maria da Penha fossem garantidos a todas as mulheres no Brasil – mas que, infelizmente, nem sempre são efetivados. A barreira entre as mulheres e o acesso à Justiça em boa parte dos casos decorre justamente da reprodução de estereótipos discriminatórios por profissionais que atuam nos serviços e que deveriam oferecer acolhimento e garantir proteção.
As discriminações que perpetuam a violência contra as mulheres, porém, permanecem mesmo quando os casos chegam ao extremo do assassinato: de acordo com a pesquisa A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no Brasil (2014), nos julgamentos realizados nos Tribunais do Júri, os operadores de Justiça ainda aplicam pouco a Lei Maria da Penha.
Em razão desse contexto discriminatório e de violência doméstica e familiar que o envolve, esse tipo de crime ganhou nome próprio na legislação brasileira: feminicídio. Sancionada em março de 2015, a Lei Ordinária de nº 13.104 tipifica e qualifica o feminicídio no Código Penal brasileiro.
Sobreposição de discriminações e violações de direitos
No caso em que as discriminações baseadas nos papéis de gênero se cruzam com outros preconceitos, como o racismo, a lesbofobia e a transfobia, o cenário de negação de direitos agrava-se ainda mais.
Michele não teve direito a sua identidade feminina, mesmo depois de ser vítima da mais extrema violência baseada no gênero. Daí a importância de os operadores do Direito aplicarem a qualificadora para as mulheres trans, conforme consta na denúncia realizada pelo MP e aceita pelo Tribunal de Justiça neste caso:
“Por tratar-se de norma protetiva de gênero e levando em consideração que a vítima pertence ao gênero feminino, pois se comportava socialmente como mulher, bem como a agressão foi praticada por seu companheiro, deve ser reconhecida a qualificadora do feminicídio.”
Para o promotor Flavio Farinazzo Lorza, o Direito precisa ser uma esfera de desconstrução – e não de reprodução – do machismo. “É claro que o combate ao machismo tem vários momentos, mas se a esfera jurídica não dá o tratamento necessário é muito difícil que haja uma mudança de perspectiva”, avalia.
Neste contexto, Flavio Lorza defende que o Ministério Público seja atuante nesse sentido. “Os estereótipos discriminatórios são muito presentes na vida, no mundo, então seria surpreendente se não estivessem presentes também no mundo do Direito e nos Tribunais do Júri. Mas gosto de considerar o Ministério Público como uma instituição que tem que implementar novas formas de pensar, reformular conceitos que são muito convencionais, muito arraigados, e que o mundo contemporâneo exige que sejam reformulados”, afirma.
Além do feminicídio, Luiz Henrique Marcondes dos Santos foi denunciado por ocultação de cadáver. A pena pode chegar a 30 anos. O juiz do caso deve decidir se o acusado vai a júri ou não em novembro, segundo informações do MPSP.