Depois de 12 anos como musa de J’adore de Dior, Charlize Theron é o ícone das coolagers, essas mulheres não afetadas pela passagem do tempo que redefinem o conceito de idade
(El País, 24/10/2016 – acesse no site de origem)
Na tela é a rainha da transformação, e em pessoa? Quando você está na mesma sala, Charlize Theron faz voar a imaginação de seu interlocutor, que volta 60 anos atrás, na idade de ouro de Hollywood. Sua imagem, asseguramos, não se encaixa na retina, porque a sul-africana é “demais”: muito loira, muito alta (1,77 m), muito esbelta, muito bonita, muito deusa. A atriz de 41 anos tem o porte de Lauren Bacall e Rita Hayworth.
“Em uma palavra, Charlize é impressionante”, resumiam em maio último os participantes da reabertura do Colle Noire, o castelo ao sul da França onde morou Christian Dior e que foi renovado pela empresa parisiense. Theron, imagem do perfume J’Adore desde 2004, visitou a mansão de Montauroux com o cabelo preso em um coque e um vestido de Dior de ar clássico, ancorado no presente. A roupa era a reinterpretação de uma peça da coleção primavera-verão de alta costura de 2016; mas em vez de usá-lo sobre um top de pedraria, a intérprete preferiu colocá-lo por cima de um com renda negra de chantilly.
O andar, o olhar penetrante e a pontualidade – não são muitas as estrelas empenhadas nisso – a colocam em outro plano. E ela não se esforça para romper o feitiço. Durante o evento quase não se mistura com os jornalistas. Opta pela companhia de Claude Martinez, CEO da Perfumes Dior; Bernard Arnault, proprietário da LVMH – o conglomerado de luxo que é dono da Dior; e outros convidados VIP. Às vezes, sua linguagem corporal se confunde com a de um mandatário: firme, egrégia, distante. Em seus gestos é possível ver a disciplina do balé, que praticou desde os seis anos. Theron foi bailarina profissional até os 19 anos, quando os joelhos começaram a falhar. Mas uma pirueta – ganhar um concurso internacional de moda com 16 anos – a transformou em modelo (apareceu em uma campanha da Guess Jeans em 1992) e exerceu a profissão, conta, “para pagar os estudos de dança”. Outra mudança – um caça-talentos a descobriu enquanto tentava descontar um cheque em um banco por um de seus trabalhos como manequim –, a levou a estrear no cinema com 20 anos em um papel muito secundário (nem falava): Colheita Maldita 3. A sul-africana teve que suar. Nas audições seu sotaque não se encaixava. Hoje, possui uma pronúncia perfeita, com uma dicção clara. E isso apesar de que sua língua materna não é o inglês, mas o africâner. Lembra que seu físico e sua beleza tampouco se enquadravam; em cada audição devia se esforçar para ser vista como “algo mais que apenas um manequim”.
Reinar em Hollywood
Mais de duas décadas após aquele princípio, Charlize governa a meca do cinema, confirmada como uma das atrizes mais bem pagas – 16,5 milhões de dólares por ano (51,9 milhões de reais), segundo a revista Forbes. Desse trono não costuma dar entrevistas (só a conta-gotas), como aconteceu em Colle Noire. Embora tenha se sentado para jantar. E os rumores são verdadeiros: gosta de comer.
“Eu me senti muito afortunada na abertura. Conheci os vizinhos do costureiro e vários funcionários, como Lucienne [Rostanio], uma senhora de quase 90 anos que cuidava das rosas do jardim, que me contou várias histórias sobre o designer”, explica alguns meses após o evento, por telefone e em uma exclusiva de Los Angeles. “Fiquei atordoada. Sabia que ia ser uma experiência única, mas calculei mal porque foi mais do que esperava. Como não sentir-se sobressaltada em um castelo de sonho? Não acredito no esotérico, mas confesso: aquela noite foi mágica. Senti uma energia especial no ambiente, eu me senti feliz”. E não foi só por isso. O evento coincidiu com o Festival de Cinema de Cannes.
Um dos filmes que estavam competindo era The Last Face, dirigida por Sean Penn, seu marido de dezembro de 2013 até junho do ano passado. O rumor era que Charlize não iria participar do festival. Mas no final ela foi, e deixou-se fotografar beijando a bochecha de seu ex. O filme, aliás, não foi bem recebido. Foi acusado de ser pomposo, superficial e até mesmo racista. “Minha profissão tem grandes vantagens. Uma delas é o acesso a eventos exclusivos e caminhar sobre o tapete vermelho”.
Aí gosta de escolher sua roupa: “É preciso se arrumar. As atrizes devem se vestir adequadamente, considerando o evento ao qual estamos indo. Felizmente, esses eventos me permitem explorar o mundo da moda e usar designs incríveis. Conceber os estilismos é algo refrescante. A moda é visual e conta histórias. Quando interpreto, sinto que a roupa me permite modelar o personagem, entrar em sua pele. Para mim, é essencial aproveitar a oportunidade que tenho para expressar como me sinto e me comunicar. Por isso, em um evento, me esforço para encontrar o modelo perfeito, com o qual me sinta confortável naquele dia e que me permita brilhar. Eu me envolvo muito”, diz.
Sua vida poderia inspirar um roteiro. Não nasceu rodeada de luxo, precisamente. Theron cresceu em uma fazenda empoeirada nos arredores de Benoni, uma cidade a 54 quilômetros de Pretória, a capital da África do Sul. Aos 15 anos, presenciou uma cena macabra: sua mãe, Gerda, matou seu pai com um tiro. Charles era alcoólatra e maltratava as duas. As autoridades aceitaram a alegação de autodefesa.
Como ela mesma já disse várias vezes, a maioria de seus vizinhos hoje estão mortos, a África do Sul ocupava nos anos 90 o primeiro lugar na lista dos países com maior número de homicídio. Ainda continua liderando outro ranking: o de maior número de casos de HIV, 6,5 milhões de pessoas soropositivas vivem no país.
Em 27 de outubro a fundação amfAR vai homenageá-la por seu trabalho solidário. Em 2007, Theron fundou Africa Outreach Project, uma ONG com vários objetivos: reduzir a violência, os casos de AIDS, os abusos sexuais e a desigualdade entre homens e mulheres. É uma garota reivindicativa, sem meias palavras: em 2015, e depois de ter vazado que Jennifer Lawrence tinha recebido menos que seus colegas de elenco em Trapaça (David O. Russell, 2013), Theron bateu com o punho na mesa. Exigiu o mesmo salário que Chris Hemsworth, com quem estrelava O caçador e a rainha do gelo (Cedric Nicolas-Troyan, 2016).
“A produtora não vacilou, concordou. Talvez essa seja a mensagem: as mulheres devem exigir. É hora de alcançar a igualdade. As meninas devem saber que não há nada de errado em ser feminista; ao contrário. É uma atitude que não envolve odiar aos homens. Significa direitos iguais. Se o trabalho é idêntico, a remuneração também deve ser”, disse em junho do ano passado na edição norte-americana da revista Elle.
Hoje esclarece: “É complicado. Sou uma privilegiada. Posso me dar ao luxo de jogar na cara de um estúdio. Posso dizer: ‘Paguem-me a mesma coisa que eles, ou não vou aceitar o papel’. Sou tão privilegiada que até me ouvem. Muitas mulheres não desfrutam dessa liberdade. Comportar-se como eu fiz carrega um risco. Significa arriscar o emprego. Não quero ser mal interpretada, que me vejam como alguém pouco empática. Todo mundo tem sua própria luta; existem prioridades, como colocar comida na mesa”.
A opinião, porém, continua sendo a mesma: “Quanto mais falarmos do tema, melhor. É saudável insistir sobre o difícil que é para nós reivindicar essas questões. Fazer barulho é vital, porque a sociedade ainda deve mudar muito. Pedir o mesmo salário deveria ser algo natural”, afirma.
Seu discurso lembra o de Hillary Clinton, que denunciou em várias ocasiões a diferença salarial (no mundo, elas ganham 77% do que recebem os homens, de acordo com um relatório recente da ONU). “Houve líderes maravilhosos. Uma mulher na presidência dos Estados Unidos pode ser um grande impulso. Hillary pode significar um empurrão; a Casa Branca é um símbolo importante. Sobre as motivações da candidata, não reivindica o voto por ser mulher. Em geral, nenhuma de nós luta por um posto por esse motivo. Fazemos porque queremos e porque sabemos que somos as pessoas adequadas, as melhores. Temos o mesmo orgulho que eles”. Theron, aliás, doou 2.700 dólares (8.500 reais) para a campanha da candidata democrata.
Também se tornou o ícone das coolagers – termo cunhado pela atriz Ellen Pompeo, estrela da série Grey’s Anatomy –, uma nova geração de mulheres que não têm medo de envelhecer. “Hoje em dia, há mais mulheres contando histórias, escrevendo, dirigindo, produzindo e envolvidas na política. A mudança na última década foi enorme. Esta era significou um ponto e parágrafo; a revolução: somos conscientes, por fim, de nosso valor. A indústria sabe, por isso escolhe outro tipo de musas, menos perfeitas e de todas as idades. Há 12 anos sou a embaixadora da Dior… Toda uma mensagem carregada de significado. As marcas nos valorizam de forma diferente”, afirma Theron.
Pratica ioga em um dos mais famosos estúdios de Los Angeles. Seu professor é o guru Vinnie Marino, apelidado pelo The New York Times de “o rei da ioga”. “Ao lado do spinning, é a disciplina que mais gosto, mas se tiver que perder uma classe, não tem problema; prefiro passar mais tempo com meus filhos”, confessa. Tem dois filhos adotados: August, de um ano, e Jackson, de cinco. “Ter decidido ser mãe com quase 40 anos foi algo correto, dá uma perspectiva diferente das coisas; de repente, as prioridades passam a ser outras”.
Não é o caso da imprensa sensacionalista e as centenas de internautas que sucumbem a um dos passatempos favoritos da era Facebook: a caça de famosos. Apesar de seu recato exibicionista – cuida muito de sua vida privada –, as redes sociais ferviam em agosto com fotos de seu filho Jackson vestido como a princesa de Frozen. É que, como garante Charlize, “a sociedade ainda precisa mudar muito.”
Ela tem um tique. Depois de cada pergunta, faz uma pausa e fala “aha”. O primeiro nos deixa fora de jogo; o tom frio confunde, quase parece estar com raiva. São coisas do telefone. Theron explode em um riso leve várias vezes.
Falamos de moda novamente. “Amo os saltos, mas fora do tapete vermelho ou das festas costumo usar tênis; conforto acima de tudo”. E, novamente, o cinema. Fala de sua produtora. Isso deu independência e méritos. Monster – Desejo Assassino (2003), o filme pelo qual ganhou um Oscar e um Globo de Ouro, e que produziu através de sua empresa, Denver & Delilah. “Não decidi fundá-la em um dia. Sua criação é o resultado de ter trabalhado em muitas filmagens e observado o trabalho dos outros. Aconteceu de forma espontânea, comecei a falar sobre financiamento e quando dei por mim estava produzindo. Amo contar histórias, tenho alma de narradora e gosto de analisar e observar personagens. Nos últimos anos, crescemos muito [foi criada em 2000]. Somos uma equipe de seis pessoas e temos um departamento de cinema e outro de televisão. Não paramos, temos vários projetos nas mãos [em 2017 vai estrear The Coldest City(David Leitch) e um projeto com o ator Nash Edgerton (Moulin Rouge)]”.
Planeja dirigir? “Se isso acontecer, será naturalmente. O cinema é um setor orgânico. Neste negócio não há compartimentos estanques, assim é como eu vejo”. E dá para notar: acaba de filmar Velozes e Furiosos 8 (F. Gary Gray, 2017). O compositor da trilha sonora, Brian Tyler, comparou seu papel ao de Hannibal Lecter, interpretado por Anthony Hopkins em O Silêncio dos Inocentes. “Sou a vilã, sim. Não sabia que tinham me colocado no nível do vilão de Silêncio dos Inocentes… [risos] Interessante! O personagem é a vilã perfeita para essa franquia. Na minha opinião, foi um acerto continuar com ela”. Sobre seu possível retorno a Mad Max [um sucesso no ano passado, que ultrapassou os 300 milhões de faturamento], responde com evasivas. “Houve muita especulação, mas não tenho nada de concreto a dizer sobre esse assunto”.
Continua interessada em títulos infantis. Emprestou sua voz ao personagem de Sariatu no filme de animação Kubo, inspirado em Akira Kurosawa e Hayao Miyazaki. “É um filme ocidental, mas, essencialmente, é muito japonês. Fui seduzida pela ideia de me envolver em um filme de animação tão exigente e detalhista. O resultado é magnífico. E [meu filho] Jackson adorou. Ficou entusiasmado. Assim que viu o trailer, disse: ‘Mamãe, é a sua voz’”.