À frente da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça desde junho,Flávia Piovesan é uma voz dissonante dentro do governo de Michel Temer. “Eu mesma sempre digo que estou aqui pela causa”, avisou ao HuffPost Brasil.
(HuffPost Brasil, 22/10/2016 – acesse no site de origem)
Diante das barreiras conservadoras no Congresso, a doutora em Direito Constitucional trabalha por um pacto universitário para incentivar pesquisas na área. A aposta dela é desconstruir o conservadorismo do Parlamento pela educação.
“Difícil imaginar avanços nesse Legislativo. Acho que é mais esperançoso o espaço jurisdicional. Como foi no passado. Há um protagonismo crescente do Supremo [Tribunal Federal]”, crê.
Professora na PUC de São Paulo e especialista em Direitos Humanos, Flávia é favorável à revisão da Lei da Anistia, apesar de deixar claro que essa não é uma visão do governo Temer. Ela também defende a criminalização da homofobia, mas aponta que mais difícil do que mudar leis é mudar a cultura.
Uma voz que destoa dentro de uma equipe de homens com trajetória na vida pública, a secretária acredita que a igualdade de gênero só será alcançada a partir de mudanças na vida doméstica.
Leia a íntegra da entrevista:
HuffPost Brasil: Desde quando a senhora assumiu o cargo, o que foi possível fazer? Há um diagnóstico de áreas críticas? Mudanças em programas ou adoção de novas medidas? Quais são?
Flávia Piovesan: Nós vemos direitos humanos como uma política de Estado. Eu, como defensora de direitos humanos há 20 anos, acompanho essa institucionalidade desde que ela foi criada em 1996, quando foi instituída a Secretaria de Direitos Humanos.
Quando nós aterrisamos aqui, há três meses, a ideia foi justamente frisar direitos humanos como política de Estado, conhecer, ainda que eu tenha sido membro do Conselho de Direitos Humanos, o CDTH à época, por dez anos… Me era muito familiar. Primeiramente no Ministério da Justiça, depois aqui.
Mas foi conhecer os programas, impulsionar os programas exitosos e impulsionar os que mereciam maior cuidado. E sobretudo dar continuidade ao componente democrático das políticas públicas. Nós estamos atuando em várias frentes.
Está sob consulta pública no site esse pacto universitário com a promoção do direito à paz, diversidade, direitos humanos, que vai ser lançado em novembro. A ideia é fomentar a cultura de direitos humanos, a pesquisa, a produção do saber, extensão universitária, permitir que cada universidade crie seu espaço próprio para recebimento de denúncias, como racismo, homofobia etc. Tem entidades de apoio que vão fomentar a pesquisa, desde a Capes, British Council. Ontem tive uma reunião com a Avon. Eles querem financiar uma pesquisa de violência contra a mulher. Será algo bastante inovador.
Tem mais algum outro projeto em vista?
Além disso, vai ter uma agenda com o MEC para estimular a cultura de direitos, o diálogo, mediação, paz no ensino básico e nos valendo muito da internet como um mecanismo que vai alcançar toda essa geração que é native do digital world. Temos o programa Humaniza Redes, e a ideia é estimular e pautar um ensino básico pautado por valores, direitos. Eu até convido, nós escrevemos na semana passada no Globo, onde eu tenho uma coluna há quatro anos. O último artigo, na quinta-feira, foi justamente contra o projeto da Escola sem Partido. Nós nos aliançamos com a ONU, com várias agências, desde a Unesco, fomos coautores, a ONU Mulheres, o Fundo de População das Nações Unidas, todos representantes e a temática é nessa linha: educação para direitos humanos porque nós partimos da premissa de que há uma cultura de violação e negação de direitos e que a melhor resposta é fomentar uma cultura de afirmação e promoção de direitos.
Como fomentar essa cultura?
Dos estudos todos, eu que venho da Academia, [sabemos que] violência contra a mulher carrega um componente cultural pautado nas relações assimétricas de poder das relações entre homens e mulheres. A melhor resposta é desmantelar essa cultura da violência contra a mulher. E por aí vaí. Homofobia demanda uma cultura homofóbica. Racismo requer um pressuposto também.
Sobre a Escola sem Partido, há uma movimentação entre os parlamentares de frear avanços de direitos humanos, principalmente na área da educação. Na elaboração da base curricular nacional comum dentro da reforma do Ensino Médio, será possível emplacar uma política formal, de Estado, voltada para o combate à discriminação?
São duas frentes. Temos essas iniciativas em conjunto com o MEC, inclusive o pacto universitário, em conjunto com outros atores. Acho que nosso papel é muito fazer uma interlocução. Mas a ideia é que na base curricular comum haja densificação dos valores. Isso tudo é cumprimento da Constituição, dos tratados internacionais. Eu que venho dessa área, sempre argumento porque acho que é pedagógico dizer: o discurso de direitos tem um apelo moral e tem que ter sempre, mas tem a retaguarda jurídica. Quer dizer, o Brasil está louvando, cumprindo a Constituição e os tratados quando aposta numa educação para direitos humanos.
Toda a base jurídica desse artigo [sobre a Escola Sem Partido] vai nessa linha. Há desafios. Nós temos ainda um Legislativo que tem suas bancada conservadoras, mas (lê o artigo) é fundamental assegurar um educação que permita transitar de uma cultura de negação e violação a direitos para uma cultura de afirmação e promoção, de uma cultura de violência, para uma cultura da paz. De uma cultura de discriminação e intolerância para uma cultura de respeito e diversidade. Há toda uma base jurídica que assegura, que protege esse direito. Da minha parte, eu como secretária, farei tudo para impulsionar essa agenda, enfrentando os desafios e obstáculos que virão, que não são poucos.
Acho que nós temos que mudar mentalidades. Alterar leis é importante, claro, mudar políticas públicas, mas o mais difícil, na minha experiência, é a transformação cultural. E nós temos que dar uma contribuição. A conjuntura é difícil. Haverá oponentes. Depois desse artigo, já recebi uma enxurrada de críticas, mas acho que quem está nessa área vai ter esse tipo de resistência e a questão é avançar. E saber explorar os pequenos avanços.
Criminalizar a homofobia pode mudar a mentalidade das pessoas?
Há 11 anos, fui consultora em um projeto que deu origem à lei que proíbe a palmada. A Suécia foi o primeiro país do mundo a adotar a anti-spanking law em 1979. Antes da adoção da lei, 70% eram contra. Com um programa de capacitação, adotada a lei, em um ano, 70% passaram a ser favoráveis. [Sobre] Tipificar a homofobia, sou absolutamente favorável. Acho que é coerente com a nossa ordem jurídica. Os crimes de ódio devem ser enfrentados. Ninguém deve perder sua vida em razão de uma intolerância. Isso não pode ter espaço no Estado democrático de direito. Nós temos que enfrentar as políticas do ódio, seja com base homofóbica, religiosa.
Creio que essa lei deva ser acompanhada de todo um trabalho como diagnósticos. Pesquisas, campanhas de sensibilização são frentes muito importantes para que além da mudança legislativa ela propicie uma mudança de mentalidade. Claro que a lei estampada no Diário Oficial do dia pra noite não vai mudar a realidade.
Adotada essa lei, me parece fundamental conscientizar as vítimas, capacitar os operadores do direito, que nessa área são bastante conservadores, o serviço de segurança, delegacias, policiais… É o começo de um processo.
Sobre a questão da tortura, alguns historiadores apontam que o Brasil, diferente de outros países da América Latina, não consideram oficialmente a ditadura como um crime. A senhora acha que a revisão da Lei da Anistia seria um caminho?
Pessoalmente, entendo e defendo a justiça de transição nas vertentes: direito à verdade, direito à reparação, a reparação da justiça.
Essa é um tema que no fundo está nas mãos de outros atores. O Judiciário é muito oscilante. Aqueles juízes que entendem que é fundamental, por exemplo, [abrem] ação penal que é proposta em face de um agente que cometeu tortura. Alguns juízes entendem que pela Lei de Anistia, arquive-se. Outros entendem que não. O Supremo decidiu esse assunto. Eu pessoalmente, e aqui devo dizer que não é a posição do Estado, entendo que é fundamental avançar no direito à justiça. Acho fundamental que a justiça seja feita à luz dos parâmetros nacionais, internacionais, inclusive louvando a decisão da Corte Interamericana.
É um tema sensível. Entra governo, sai governo e é um tema intocável. Essa é a grande verdade até porque temos decisão do Supremo de abril de 2010 [quando a corte decidiu que a Lei da Anistia vale para todos os casos de tortura e crimes comuns, cometidos tanto por civis quanto por agentes do Estado na ditadura].
A senhora vislumbra um grande embate com o Congresso Nacional devido à linha conservadora lá dentro de querer barrar avanços aos direitos humanos?
É um momento desafiador. Temos de saber identificar as estratégias adequadas. Eu já fiz declarações que hoje revejo no sentido de “bom, no Congresso temos uma pluralidade de forças”. É desafiador porque as pesquisas apontam que houve realmente fortalecimento das bandas mais conservadoras. As estatísticas apontam. Mas há setores também aliados. Não podemos colocar os 511 deputados mais 81 senadores num bloco monolítico.
Há uma dificuldade, por divisões partidárias, de chegar a esses setores?
Não saberia responder. Acho que os partidos hoje são tão partidos. Vivemos hoje uma crise da representação política. Eu mesma sempre digo que estou aqui pela causa. Não tenho qualquer filiação partidária. É o que me mantém. Creio que o espaço não é simples sobretudo para defesa dos direitos dos mais vulneráveis, desde a causa LGBT. Difícil imaginar avanços nesse Legislativo. Acho que é mais esperançoso o espaço jurisdicional. Como foi no passado. Ha um protagonismo crescente do Supremo.
No início do governo Temer, houve duras críticas à falta de participação das mulheres. Foram feitas nomeações, mas na cerimônia de lançamento do Criança Feliz, o presidente citou apenas mulheres como responsáveis pelo programa, dando a entender que a primeira infância é um tema exclusivamente feminino. Como mudar essa postura?
Acho que temos que transformar isso. Eu, como mulher, acho que nós temos que ampliar nossa participação sim. Temos que revisitar papéis. O próprio papel da família. A família deve ser democratizada. E com isso o ganho será para todos. O empoderamento das mulheres requer sobretudo a democratização da esfera doméstica.