Mulheres trans superam rótulos e abrem as portas da política e das universidades no Brasil

22 de novembro, 2016

Apesar de ainda enfrentar preconceitos, grupo conquista áreas de “privilégio” na sociedade

(R7, 22/11/2016 – acesse no site de origem)

Durante dez meses, Amara Moira, 31 anos, pagou o crediário de uma loja de departamento onde renovou o guarda-roupa — todas as peças foram compradas, pela primeira vez, na seção feminina. Era o início de sua transição de gênero, do uso de um novo nome e da construção de uma imagem diferente. Nessa época, Amara já estava em seu doutorado na Unicamp, em Campinas, interior paulista, e um dia chegou à universidade usando algumas dessas novas peças que ela adquiriu. Foi para a aula com uma calça jeans, tênis rosa e uma blusa do Bob Esponja. Com a nova identidade e aparência, gerou uma “dúvida”.

— Uma das primeiras frases que eu ouvi [na universidade] foi: nossa, vai virar prostituta? E eu estava com tênis, uma calça jeans… não é bem a imagem de uma prostituta, mas bastou me ver como travesti para imediatamente me entender como prostituta porque é só assim que se consegue ver travestis. Se você é travesti, necessariamente você tem alguma relação com prostituição.

E este é um dos estigmas que acompanha as mulheres trans. Muitas vezes expulsas de casa pela família, elas acabam marginalizadas. Param de estudar, encontram dificuldade para arranjar um emprego e acabam empurradas para a prostituição por falta de outras possibilidades. No entanto, nos últimos anos, a presença de mulheres trans em áreas consideradas privilegiadas da sociedade, como a política — em 2016, ao menos 97 pessoas trans concorreram às eleições municipais e dez foram eleitas, segundo levantamento realizado pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). A universidade também começa a mostrar que esse destino pode ser bem diferente.

Amara é uma dessas mulheres. Ela se candidatou à Câmara Municipal de Campinas neste ano e faz doutorado na Unicamp. E foi na universidade que seu processo de transição aconteceu.

— Uma parte dos meus privilégios foi fazer transição em um espaço que já conhecia o mundo trans, uma universidade onde tinha figuras que colocaram o debate em evidência. Tive amigas que largaram o curso na USP e eu não. Eu tinha um ambiente disposto a me deixar existir. Eu estava no final do mestrado, tinha uma bolsa de estudos garantida por quatro anos, estabilidade financeira e isso fazia com que eu me colocasse de uma outra forma.

Na Unicamp, quem abriu caminho para Amara foi Beatriz Pagliarini Bagagli. Ela entrou na universidade em 2011, no começo de sua transição. Na época, ela era a única mulher trans da instituição.

— Mulher trans eu sempre fui, eu já entrei sabendo que queria transicionar, e foi a partir desse primeiro ano da Unicamp que eu pude afirmar minha identidade. Pode ser mais fácil [fazer a transição na universidade], mas depende se você tem onde morar, se você tem dinheiro suficiente pra se manter, apoio familiar e etc… então eu acho que a universidade oferece boas oportunidades, mas é tudo relativo. Eu me senti bem recebida quando entrei. Mas sei que não posso generalizar essa minha experiência para demais pessoas, já que infelizmente a universidade ainda continua muito excludente contra pessoas trans. Por mais que eu tenha sido bem recebida, eu não fui recebida por nenhuma pessoa trans, ou seja, estava sozinha num mundo cis.

Beatriz fez a graduação em letras na Unicamp e voltou à instituição para o curso de estudos literários. Na última semana, foi aprovada no programa de mestrado em linguística da universidade. Além disso, ela é uma das fundadoras do coletivo TransTornar, que conta com cerca de dez alunos trans. Mesmo com o número ainda pequeno, ela considera importante essa representatividade.

— É importante porque a universidade é um espaço que representa ascensão social e diversas oportunidades importantes na vida de qualquer pessoa. É importante também porque isso impacta no tipo de conhecimento que é produzido sobre nós — e agora, para nós, feito por nós, e não apenas sobre. O feminismo já vem discutindo isso, sobre a questão de saberes das minorias e a partir do momento em que uma minoria acessa a universidade, ela tem muito a oferecer sobre novas questões e novas formas de conhecer as mesmas questões de forma crítica.

Dodi Leal, 32 anos, é a primeira doutoranda trans na psicologia da USP. A transição começou há seis meses e a universidade foi importante para impulsionar essa mudança.

— Entrei no doutorado para fazer pesquisa sobre travestis na psicologia. Ao longo do percurso, fui entendendo quem eu era e agora me vejo como uma mulher trans e isso tem sido muito desafiador.

Para Dodi, a presença de pessoas trans em ambientes como esse ajuda a mostrar que há outras possibilidades de vida para essa população.

— A universidade representa uma ascensão, uma mobilidade de classe então existe uma condição de estrutura e reconhecimento diferenciado. A gente se apoia nessa nova condição para ter mais força para se afirmar. A sociedade tem o estigma com a pessoa trans e acha que ela ou vai ser puta ou cabeleireira, que são profissões com dignidade, mas lida como se qualquer pessoa trans fosse para esse caminho e esse estigma vai empurrando as pessoas para isso. Então, ao entrar em uma universidade, a gente tem condição de se afirmar pela profissão.

Mesmo assim, Dodi conta que algumas questões são complicadas. Além do doutorado na USP — onde já conseguiu alterar seu gênero na secretaria sem dificuldade — Dodi é coordenadora de pesquisa-ação na secretaria da cultura e dá aula de contabilidade em um curso de MBA de uma universidade particular. Nesta última atividade, Dodi – que é formada em contabilidade e artes cênicas e tem mestrado em contabilidade – ainda não é tratada no feminino como nos outros ambientes em que já conquistou esse reconhecimento.

— Lá eu vou mais andrógena…o cabelo meio preso, uma blusa decotada, não vou de unha pintada ainda e me tratam no masculino. Me incomoda um pouco não só por que me tratam no masculino, mas por eu abrir essa exceção. Eu queria já resolver tudo de uma vez, mas não quero perder o trabalho. Se eu soubesse que não ia ser demitida eu falaria, mas ainda não sinto essa segurança.

Dodi dá aula na instituição há cinco anos e disse que já recebeu convite para continuar na universidade no ano que vem, mas teme a reação da direção e também dos alunos.

— É uma universidade privada, lida com executivos e vou estar desbravando duas frentes […] a faculdade e o meio empresarial. E eu quero continuar lá, eu quero construir junto. Então vou ver como lidar.

Esse tipo de situação mostra que, apesar do espaço conquistado por essas mulheres, há muitos desafios pela frente. Beatriz acredita que a sociedade ainda não está preparada para receber pessoas trans.

— Não está e não é apenas a universidade, já que a universidade não existe apartada da sociedade. É a sociedade como um todo que não está preparada para receber pessoas trans. Mas eu consigo ver mudanças positivas nesses últimos cinco anos: nome social no Enem e em escolas, cursinhos preparatórios para pessoas trans, programa transcidadania na cidade de São Paulo, expectativa de pessoas trans de ingressarem na universidade por conta dessas iniciativas.

Política

Outro espaço que começa a ter mais presença e representatividade de pessoas trans é a política. Neste ano, foram ao menos 97 candidaturas — sendo duas para prefeitas e as demais para Câmara dos Vereadores — com dez eleitos. São Paulo, com 24 candidaturas, é o Estado que apresenta o maior número, seguidos pelo Rio Grande do Sul e Minas Gerais com nove candidaturas cada, e Bahia com oito candidaturas.

Keila Simpson, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), acredita que o número é positivo, apesar de ainda não haver um comparativo com eleições passadas.

— Isso foi o que conseguimos mapear, mas acreditamos que pode ter muito mais. Acho que pela primeira vez a gente de fato tem exata noção de que a pessoa trans está tomando uma responsabilidade que também é dela. A gente fica refém da política e da politicagem e a gente precisa adentrar para brigar e trabalhar para sermos reconhecidas.

Amara Moira foi uma das candidatas por São Paulo. Ela saiu a vereadora pelo PSOL em Campinas e teve 1.020 votos e considerou o resultado positivo, mesmo sem ter sido eleita.

— A questão nunca foi me colocar para ganhar, era mais usar o debate eleitoral como uma forma de trazer as pautas que eu já carregava antes da candidatura. A minha pauta era uma Campinas seguras para mulheres LGBTs.

Para Amara, apesar da boa repercussão da sua candidatura e da presença e eleição de pessoas trans pelo Brasil, a política também não está preparada para receber pessoas trans.

— Com certeza não está pronta e é por isso que a gente precisa estar nesses espaços porque se a gente não estiver lá, a [política] nunca vai estar preparada para nos respeitar e nos tratar como iguais e ver que somos capazes de participar do processo de decisão política.

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas