Nasceu no Curdistão, mas ficou lá poucos dias. Os conflitos colaram-lhe o estatuto de refugiada. Ela e a família passaram anos de um lado para o outro e a mãe chegou a dar à luz um irmão seu numa montanha. Hoje, Mina é a diretora da Women Refugee Route, recebeu o prémio Voice of Courage e quer acabar com a violência sexual nos campos.
(RTP, 30/11/2016 – acesse no site de origem)
As conferências já lhe são um ambiente próximo. Mina Jaf, 28 anos, esteve em Portugal no Fórum Lisboa sobre o tema “Migração e Direitos Humanos”. Lembra-se de ser criança e ouvir a mãe a conversar à noite com outras mulheres, que desabafavam sobre os episódios de violência sexual de que tinham sido alvo. Hoje, já adulta, Mina diz querer dar às mulheres nos campos um ambiente o mais próximo possível de uma vida comum.
Por isso, está a criar bibliotecas nos campos de refugiados para que as mães possam ler uma história aos filhos e tem uma equipa de tradutoras, para que as mulheres se sintam à vontade a falar na sua língua com outra mulher. A fundadora da Women Refugee Route (WRR) conta toda a história em entrevista exclusiva à RTP.
Quando era criança, a Mina e a sua família viveram em vários sítios entre o Curdistão iraquiano e o Irão. O que é que aconteceu exatamente?
Eu nasci numa cidade que foi atingida por gás químico por ordem do Saddam Hussein. Fomos obrigados a sair de lá e tivemos de nos mudar para o Irão. Depois, a nossa cidade voltou a ficar segura para habitar e quisemos voltar, porque os refugiados, tal como toda a gente, querem sempre voltar à sua terra. Voltar à terra significa que estás em casa, no teu lar. Voltamos ao Curdistão mas depois, em 1988, tivemos de voltar ao Irão porque houve mais conflitos. E andamos sempre nisto.
Lembro-me que continuávamos a andar de um lado para o outro porque nos sentíamos deslocados. É muito difícil, porque tens de deixar para trás o teu país, a tua família, os teus amigos… E não tens a certeza se vais voltar a vê-los. Depois começamos a nossa viagem para a Europa. Primeiro ficamos na Alemanha e, quatro anos depois, fomos para a Dinamarca.
Há episódios muito curiosos que ainda hoje tenho na memória. Por exemplo, eu hoje em dia adoro fazer caminhadas nas montanhas e às vezes penso: “Isto é mesmo difícil, andar aqui pelas colinas”. Mas depois lembro-me que, em 1991, tivemos de passar do Curdistão iraquiano para o Curdistão iraniano pelas montanhas porque não tínhamos mais nenhum transporte. E foi nas montanhas que a minha mãe deu à luz um irmão meu. Ali mesmo, em frente a todas as pessoas que estavam a fazer o mesmo caminho que nós.
Na Dinamarca esteve com outros refugiados, certo? Da Bósnia, Somália, Ruanda…
Sim. Quando és refugiada, tens de estar sempre a adaptar-te a uma comunidade nova, e depois a outra e a outra… Por isso tens de criar uma grande auto-confiança para te adaptares constantemente a uma nova escola, a uma nova forma de fazer as coisas, a pessoas novas, com quem às vezes não consegues comunicar porque não sabes a língua delas.
Mas hoje sabe cinco línguas, certo?
Sim.
Quais são?
Falo curdo, dinamarquês, inglês, alemão e dari (um dos idiomas do Afeganistão). Aprendi ao conviver com todas aquelas pessoas nos diferentes campos. Isto apesar de ter perdido cinco anos de escola, por causa de andar sempre de um lado para o outro. Aquele convívio trouxe-me benefícios hoje para o meu trabalho. Trabalhei numa ONG na Bélgica, em que tinha de dar informações a refugiados. Tínhamos muitos afegãos a chegar mas não tínhamos quase nenhuns intérpretes que percebessem a língua. Por isso deu-me muito jeito ter aprendido dari, por exemplo.
Porque é que decidiu criar a Women Refugee Route (WRR)?
Porque via uma grande falta de atenção às refugiadas, especialmente aqui na Europa. A violência contra as mulheres em conflito é um tema sensível e fica para trás. É abordado apenas numa mesa de reuniões. Falta ir ao terreno e ver. E eu pensei: “Não, temos de quebrar o silêncio e ir lá”. A WRR serve para dar voz a quem não a tem.
Que tipo de violência? Casos de violação?
Sim, violência sexual, na qual se inclui a violação. Quando era criança, houve uma altura em que vivia num campo e eu e a minha mãe estávamos juntas com outras mulheres de vários países. A minha mãe sofreu violência doméstica e eu fui testemunha dela. Mas bom, lembro-me de uma noite em que a minha mãe e essas mulheres partilharam as histórias delas. Claro que não era suposto eu estar a ouvir aquilo, era suposto estar a dormir, mas eu fingi que estava a dormir e ouvi. Elas estavam a falar sobre as violações que tinham sofrido, algumas pelas autoridades. Algumas consecutivas.
Que histórias conheceu de refugiadas na Europa?
Há muitas, mas lembro-me de uma mulher que foi violada sucessivamente pela comunidade num campo na Grécia. Ela não conseguia contar a história porque não conseguia confiar no intérprete de tradução que lá estava. Desde logo porque ele era homem. Ela precisava de se sentir confortável para contar porque as violações eram constantes, não foi algo que só aconteceu uma vez. Ela precisava de garantir que aquela informação ficava segura. Um dia ela conheceu-nos e nós demos-lhe uma intérprete mulher, de confiança, que conversasse com ela. Mesmo assim, só dois meses depois é que conseguiu contar a história toda.
Como é o seu dia a dia no trabalho com a Women Refugee Route?
Eu dou a conhecer à comunidade e às instituições os cenários reais que se vivem nos campos de refugiados. E nos próprios campos, há muito trabalho a fazer. As raparigas e as mulheres não sabem quais são os seus direitos. Uma vez vi uma ONG dar uma formação num dos campos e estavam só homens a assistir. Porque lá as mulheres estão vulneráveis e ficam dentro das tendas. O que nós fazemos é ir de tenda a tenda, dar informação, puxá-las para fora…
Informação sobre quê?
Sobre como dirigirem-se ao hospital caso precisem de assistência médica, sobre os procedimentos de segurança que devem ter… As mulheres precisam de se sentir seguras. Criamos agora uma “biblioteca para mães” para que as mulheres possam ir a um sítio seguro onde possam ler um livro aos seus filhos, na sua própria língua – em árabe, curdo, ou outras línguas. Mas queremos fazer mais.
Recebeu o Prémio Voices of Courage. O que é que significa ser corajoso?
Acho que ser corajoso significa que pões as coisas em ação e que fazes realmente alguma coisa para implementar a tua ideia. Não ficas à espera, não ficas sentado só a falar sobre o assunto, mas mexes-te realmente para ajudar as pessoas. Falas com elas, bebés chás com elas, ouves histórias boas e más. Estás realmente ali com elas, não te ficas pelo falar à mesa sobre o assunto.
Catarina Marques Rodrigues e Nuno Patrício