Quando começou a dar seus primeiros toques na bola, aos 6 anos de idade, Marta teve de enfrentar os olhares inquisidores de seus vizinhos de Dois Riachos, a pequena cidade alagoana onde morava.
(BBC Brasil, 08/12/2016 – acesse no site de origem)
Eles não se aquietavam: “Como é que pode uma menina jogando bola ali no meio de um monte de menino? Como é que a mãe dela deixa?”
Foi assim quase a vida toda. Mas, nas palavras dela própria, a resposta veio no campo. “Eu gostava de jogar e eu sabia jogar. Então por que eu não podia?”, diz à BBC Brasil a atual camisa 10 da Seleção Brasileira – e uma das melhores jogadoras de todos os tempos.
Quase três décadas depois, Larissa, de 17 anos, ouve comentários não são muito diferentes daqueles que Marta ignorou quando calça as chuteiras para enfrentar duas horas de trânsito de Araruama ao Rio de Janeiro para seus treinos no Vasco.
“Menina jogando bola? Lugar de mulher é em casa, cozinhando, lavando roupa. Não é no campo de futebol”, dizem.
Larissa também não dá ouvidos.
“Acho que isso de ‘mulheres não podem jogar futebol’ não deveria existir. Claro que podem. O futebol feminino é a mesma coisa que o masculino. São 11 jogadores para cada lado, mesmo campo, mesma bola, então por que mulheres não podem jogar?”, questiona.
Mas houve um tempo em que mulheres realmente não podiam – por lei – jogar futebol no Brasil. Foi de 1940 a 1979, quando elas poderiam ir parar na delegacia se fossem flagradas jogando bola na rua.
Dizia-se que a fragilidade da mulher não combinava com um esporte de tanto contato.
“Não existe sexo frágil no campo. Mulheres são livres para fazer o que quiserem, a gente leva o futebol tão a sério quanto os homens”, rebate hoje Larissa.
Um ano após o fim da proibição do futebol feminino no país, nasceu a mais velha das três personagens desta reportagem, Emily Lima.
A história que começou a ser mudada com Marta – cinco vezes escolhida melhor jogadora do mundo da Fifa e indicada pela 12ª vez entre as três finalistas na semana passada – ganhou, neste ano, um novo capítulo com a própria Emily.
No fim de outubro, ela se tornou a primeira mulher a assumir o comando da Seleção Brasileira de futebol feminino. E a estreia, ocorrida nesta quarta, não poderia ter sido melhor: uma goleada de 6 a 0 na Costa Rica, em partida pelo Torneio Internacional de Natal.
Larissa acredita que o caminho para realizar seu sonho – jogar uma Olimpíada pela Seleção Brasileira – será menos tortuoso por causa das conquistas de Marta e Emily.
“As coisas estão evoluindo hoje por causa delas e de tantas outras que lutaram pelo futebol feminino no Brasil.”
Evolução?
Aos 14 anos, Marta deixou Alagoas e foi sozinha para o Rio de Janeiro perseguir sua vocação. Ela foi vestir a camisa do Vasco, que tinha um forte time feminino na época. Chegou à seleção brasileira logo em seguida.
Mas menos de três anos depois, o clube acabou com sua equipe de futebol feminino, e Marta quase teve que desistir de seu sonho antes mesmo de ele começar a se realizar.
Felizmente algo ocorreu: após jogar sua primeira Copa do Mundo, em 2003, um clube da Suécia se interessou por seu futebol. A menina-prodígio então foi para a Europa se consagrar como uma das melhores de todos os tempos.
O drama vivido por Marta persiste até hoje, no entanto: não é raro ver times femininos fechando as portas ou falindo por falta de dinheiro.
“Ainda temos times que não oferecem uma estrutura mínima, que não têm dinheiro para pagar jogadoras, para pagar os funcionários. Era assim no passado e, infelizmente, ainda é assim”, diz Emily, que agora quer lutar para mudar essa realidade de dentro da CBF (Confederação Brasileira de Futebol).
“É difícil porque nós não temos muitos clubes. Nós temos um monte de menina querendo jogar, mas não temos times para elas. A gente precisa da CBF, que está investindo mais agora, mudando o formato das competições, a gente precisa das federações, para que elas deem aos clubes condições de continuar investindo”, analisa.
“Acho que ainda temos muitas dificuldades, mas ao poucos estamos evoluindo.”
‘Linguagem universal’
Tendo que deixar o país aos 17 anos para jogar no sueco Umea em pleno inverno (temperatura média de -15°C) e sem falar uma palavra da língua local, Marta passou por maus bocados até se adaptar à nova vida.
Mas, como ela mesma diz, “o futebol é uma linguagem universal”, e foi com ele que ela conseguiu chegar ao topo. Se tivesse ficado no Brasil, dificilmente teria o mesmo sucesso.
“Até hoje a gente vê como é difícil achar uma escolinha de futebol para meninas. Se eu tivesse ficado no Brasil, talvez eu tivesse chegado num ponto em que eu teria pensado que realmente era impossível continuar jogando.”
O êxito de Marta tem mudado um pouco o curso dessa história.
Na própria cidade de Dois Riachos, ela conta, hoje não faltam meninas dando dribles nas ruas e imitando a estrela que saiu dali. Na Olimpíada deste ano, não foram poucas as pessoas que escreveram o nome dela na camisa da seleção brasileira, riscando o de um Neymar então em má fase.
Sua principal luta agora é para que as novas gerações – como a de Larissa – não tenham que sofrer tanto quanto ela.
“É isso que a gente tenta mudar. Mudar de vez essa realidade. Porque eu não quero que a próxima geração tenha que passar por tudo o que eu passei, por todas as dificuldades.”
Para a vascaína Larissa, a história já está mudando.
Atuando pelo mesmo clube onde Marta começou – e que voltou a abrir as portas para o futebol feminino em 2009 -, a jovem de 17 anos ganhou o apelido de Esquerdinha por seu sucesso na lateral. E já começou a realizar seu sonho jogando pelas seleções brasileiras sub-17 e sub-20.
E, por mais que admita que ainda enfrentará muitas obstáculos pela frente, ela não vê a menor possibilidade de desistir.
“Se eu sonho em ser uma jogadora de futebol, a única pessoa que pode me parar nesse sonho sou eu mesma. Ninguém de fora pode fazer isso.”
Reportagem: Renata Mendonça / Produção: Rhian John-Hankison / Edição: Dina Demrdash