Entidades, ativistas e parceiros do movimento negro repudiam a veiculação de propaganda contra a pedofilia, nos ônibus que circulam na cidade de São Paulo. Sob a responsabilidade da CET, SPTrans e Prefeitura Municipal, a peça publicitária mostra um homem negro agarrando uma garotinha branca, ajudando a cristalizar a criminalização da população negra.
(Jornalista Livres, 12/12/2016 – acesse no site de origem)
Jornalistas Livres entraram em contato com a SPTrans e receberam a seguinte resposta: “Esclarecemos que a escolha das tonalidades das ilustrações tem como única finalidade contrastar a figura infantil com a figura adulta. Não houve nenhum outro direcionamento. Independentemente desse aspecto técnico, informamos que esta edição do Jornal do ônibus foi retirada.”
Infelizmente, a explicação dada pela SPTrans foi muito ruim. O racismo, sabidamente, expressa-se exatamente na escolha da tonalidade clara para identificar atributos de bondade, pureza e caráter. A tonalidade escura, em oposição, é escolhida pelos racistas como atributo do mal. É aí mesmo que se manifesta o racismo.
A Prefeitura deveria pedir desculpas. Seria mais digno de seu histórico de defesa dos Direitos Humanos. A própria SPTrans já deu exemplos de atuação contra o racismo e pela inclusão cidadã de todos. Fez isso, por exemplo, com a confecção do Bilhete Único com estampa alusiva à Consciência Negra, lançado em 2014. Ou com o Bilhete único de combate à Violência Contra a Mulher, 2015. Também quando foi pioneira no reconhecimento do uso de nome social no Bilhete Único.
Abaixo, a íntegra da nota de repúdio assinada pelas entidades negras
Entidades, ativistas e parceiros do movimento negro, vimos a público repudiar a veiculação de propaganda institucional do transporte público na cidade de São Paulo, de responsabilidade da CET, SPTrans e Prefeitura Municipal.
Trata-se do periódico “Jornal do Ônibus”, precisamente a peça publicitária de número 1.016 de 6 a 19 de dezembro de 2016. Aparentemente é uma campanha inofensiva e legítima, de combate à pedofilia. Não há qualquer dúvida de que esta é uma campanha muito importante e necessária, o problema não é esse. O problema, aí sim, é a forma como a questão é apresentada: um homem negro agarrando uma garotinha branca.
No Brasil, a criminalização da população negra não é algo recente. Primeiramente, é importante lembrar que o povo negro jamais foi inserido no projeto de país chamado Brasil. Idéias como as de Lombroso, que diziam que nós negras e negros, pelo nosso fenótipo, somos “naturalmente inclinados ao crime”, reafirmando todo um processo de exclusão, perseguição, intolerância, na estrutura de super-exploração que sempre foi a tônica das relações sociais de raças no território tupiniquim, inclusive existiu mesmo uma tentativa de embranquecimento da população, um processo de eugenia para “limpar o Brasil”. As leis que criminalizavam nossas tradições, que proibiam nossa circulação nos espaços públicos, como a “lei da vadiagem”, tudo isso é para dizer que já naquela época, antes da famosa e duvidosa “abolição”, dizer “negro” e dizer “bandido” era basicamente a mesma coisa.
O tempo passou, mas ainda somos estes “suspeitos naturais”, potencialmente “perigosos”, o Estado brasileiro ainda não nos inseriu plenamente no conceito de cidadania, ainda hoje a perseguição de nossas tradições, principalmente religiosas, é um fato concreto. Nós que fomos empurradas(os) pela história a ocupar as periferias, territórios militarizados, dependemos do serviço público, somos sub-representados politicamente, não dirigimos as grandes empresas, somos minoria no Judiciário, quase não estamos nas universidades públicas, somos a maioria da população brasileira e pagamos mais impostos que os ricos.
Já basta de criminalização!
Ainda hoje estamos morrendo e sendo encarceradas(os), é essa a solução de um Estado que é palco de um genocídio em curso.
Essa publicidade racista da prefeitura de São Paulo, está em todos os ônibus e terminais da capital e alcançará milhões de pessoas, reforçando uma ideia de criminalização, que em nosso país tem uma história própria, a violência sexual, iniciada enquanto projeto de Estado pelos primeiros colonizadores europeus, e principalmente a violência contra crianças deve ser combatida com rigor, é fato hoje nas sociedades modernas, que o lugar mais perigoso para crianças, mulheres, idosos, é dentro do próprio lar, violência doméstica que dificulta o combate, existente em todas as camadas sociais, independente de cor, credo ou conta bancária.
Portanto, não justifica a escolha deliberada de usar imagem de um homem negro agarrando uma garotinha branca.
Exigimos que a propaganda seja retirada, e além da retratação, consideramos fundamental uma ação compensatória de combate ao racismo e à discriminação dentro dos ônibus e terminais, afinal de contas, da mesma forma que os efeitos da escravidão negra no Brasil são irreparáveis, o efeito de uma propaganda como essa pode ser mortal, basta lembrarmos do jovem negro que foi linchado na rua amarrado num poste, “confundido com um bandido”.
Não aceitamos um Estado cúmplice!
Assinam esta nota:
Círculo Palmarino, corrente nacional do movimento negro.
Rede Antirracista Quilombação.
UNEGRO.
Coletivo Sócio-cultural Simbiose Urbana.
Espaço Cultural Carlos Marighella.
Brigadas Populares.
Coletivo Kilombagem.
Núcleo de Consciência Negra da USP.
Coletivo de Entidades Negras – CEN.
Agentes de Pastoral Negros do Brasil.
Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e favelas (MLB).
Coletivo Opá Negra.
Insurgência.
Lsr.
Coletivo Rosa Zumbi.
Sônia Regina Nozabielli.
Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida – departamento de Política Puc-SP.
Givanildo M. da Silva-Giva.
Luiz Henrique Pereira da Silva.
José Henrique – Militante Anti-Racista.
Nota SPTrans
SPTrans Esclarecemos que a escolha das tonalidades das ilustrações tem como única finalidade contrastar a figura infantil com a figura adulta. Não houve nenhum outro direcionamento. Independentemente desse aspecto técnico, informamos que esta edição do Jornal do ônibus está sendo retirada.
Reafirmamos o compromisso da SPTrans de atuar contra qualquer tipo de preconceito.
Há inúmeras iniciativas nessa direção, como a confecção do Bilhete Único com estampa alusiva à Consciência Negra, lançado em 2014. O Bilhete único de combate à Violência Contra a Mulher, 2015. Postagens celebrando a diversidade de gênero, entre elas a parada LGBT, e o pioneirismo no reconhecimento do uso de nome social no Bilhete Único.