As primeiras declarações do prefeito eleito do Rio, Marcelo Crivella, logo após o resulto das urnas, trataram de drogas, aborto e ideologia de gênero, temas que fogem à competência de um prefeito e não se coadunam com o cargo. Certamente, o prefeito, conhecedor de suas atribuições, sabe que legislações referentes a drogas e aborto são de competência do legislativo federal ou do STF. Gênero, conceito de teoria sociológica que distingue o sexo biológico dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres para além das possibilidades e limites ditados pela biologia, não é de competência de nenhum poder público e, sim, do domínio do saber.
(O Globo, 21/12/2016 – acesse no site de origem)
Gênero não é ideologia e, sim, conceito teórico, e a eleição para prefeito do Rio não referendou posição contrária ao uso de instrumentos científicos de análise das relações sociais. A eleição também não referendou a negação de direitos humanos amplamente reconhecidos nacional e internacionalmente, como os direitos sexuais. Quanto à questão das drogas, cujo comércio ilegal constitui um dos principais fatores da violência que assola nossa cidade, é salutar e necessário debater sobre sua descriminalização e regulamentação de seu uso. Na realidade esse debate, particularmente no tocante à maconha, já está ocorrendo, no Brasil e no mundo, e não será silenciado por uma eleição municipal.
Tampouco estou segura de que essa eleição seja um voto contra um debate sobre o aborto. Cabe ao prefeito fazer cumprir a lei em vigor e garantir que as mulheres tenham acesso à interrupção voluntária da gravidez nos casos permitidos. Hoje, o Brasil tem legislação severíssima e caminha na direção contrária de Europa, Ásia, África, EUA e mesmo de vários países da América Latina, que vêm modificando suas leis de forma a ampliar as circunstâncias em que é permitido o abortamento, como quando há risco à saúde da mulher.
O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, pronunciou-se no sentido de considerar que o abortamento não deveria ser penalizado quando realizado até as 12 primeiras semanas de gestação. A epidemia do zika vírus, ocasionando microcefalia e outros terríveis danos ao concepto, demanda que governo e sociedade discutam, no marco de um Estado laico, a possibilidade de ampliar os permissivos para o aborto, respeitando a vontade da mulher.
Respeitar a vontade da mulher significa reconhecer sua capacidade decisória como cidadã plena de direitos e responsabilidades, em igualdade com o homem. Entretanto, alguns credos, baseados em interpretação de livros sagrados como a Bíblia ou o Corão, ainda a colocam em posição de subalternidade ao homem, o que fere a Constituição, que assegura a plena igualdade entre mulheres e homens.
Mais do que nunca, é necessário ressaltar e defender o caráter secular do Estado brasileiro. É esse caráter que permite que, para além das divergências religiosas, se construa o tecido comum da cidadania, ancorado em leis seculares e não em dogmas de fé que, enquanto verdades teológicas, por definição, não permitem a divergência, o embate de ideias, o respeito à diversidade, cerne da democracia.
Jacqueline Pitanguy é socióloga